Correio da Manha - Domingo

Em tempo de pandemia, a saúde dos líderes

Lenine tinha ateroscler­ose, Roosevelt sofria de poliomieli­te e Mitterrand escondeu o cancro

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mundiais saltou para a atualidade. A Covid-19, que atingiu Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, faz pensar como a falta de saúde pesa nas decisões dos doentes que nos governam

Apresident­e da Câmara dos Representa­ntes dos EUA, Nancy Pelosi, e o parlamenta­r democrata Jamie Raskin anunciaram, no dia 9, uma proposta a acrescenta­r à 25ª emenda constituci­onal (aquela que garante a continuida­de do Governo em momentos de crise), que visa criar uma comissão com competênci­as para declarar se o ocupante da Casa Branca está incapaz de exercer o cargo por motivos de saúde. Aparenteme­nte, a origem desta intervençã­o não se deve apenas ao facto de DonaldTrum­p ter sidoinfet ado comaCovid-19,m as também aocand ida toJoeBiden, de 77 anos( se for eleito será o mais velho Presidente empossado na História dos Estados Unidos ), ter sido operado a dois aneurismas cerebrais, em 1988– embora os seus relatórios médicoscon­s iderem que está apto para a função. Ninguém ficou convencido quando a inimiga política de Trump tentou explicar que a medida não é uma manobra eleitoral, pois só seria aplicável no futuro. No início de 2019, dois quilos levaram Donald Trump a passar para a categoria dos obesos, pois, de acordo com o boletim médico, pesava 110 quilos e também tinha o colesterol elevado. Em comparação com vários antecessor­es, até se podia considerar “saudável” – da depressão crónica de Lincoln à poliomieli­te que obrigava Roosevelt a andar de cadeira der odas, da doença de Crohn de Eisenhower às permanente­s dores nas costas de Kennedy, a Casa Branca foi ocupada por muitos “enfermos”. A saúde dos políticos tem sido abordada de vários ângulos, mas o mais pertinente será “o impacto das doenças dos chefes de Estadono curso da História ”, que David Owen regista no livro ‘Na Doença e no Poder’. E elenca: “A sua influência na tomada de decisões; os perigos inerentes ao facto de [essas doenças] serem mantidas secretas; a dificuldad­e de remover líderes doentes, tanto nas democracia­s como nas ditaduras .” Perspetiva­p are cid aé ade Pierre Accoce e de Pierre Rentchnick, em ‘Estes Doentes que nos Governam’: “Como negar que a sua saúde, cedo ou tarde, pesará sobre a sua conduta?”

Queda de Salazar

Uma vulgar cadeira de lona conseguiu o objetivo que não tinha sido alcançado pela bomba anarquista de 1937, as derrotas das ditaduras europeias em 1945, o “furacão” eleitoral Humberto Delgado de 1958 ou a tentativa de golpe no interior do regime em 1961 – derrubar Salazar. A queda, no forte de Santo António do Estoril, não teve consequênc­ias imediatas naquele dia 3 de agosto de 1968, mas, um mês depois, o ditador era operado a um hematoma intracrani­ano e, apesar de essa cirurgia ter corrido bem, quando sobreveio uma trombose, a 16 de setembro, foi o seu fim.

Exemplos portuguese­s não faltam, desde o chefe do governo António Maria Baptista, que, a 6 de junho de 1920, morreu em pleno Conselho de Ministros, fulminado por uma apoplexia (como, então, se designava um AVC), depois de ter lido uma carta insultuosa. Pouco antes do decisivo Congresso do PSD de 1985, que consagrari­a inesperada­mente Cavaco Silva, o ex-líder do partido e antigo primeiro-ministro, Mota Pinto, morria com problemas cardíacos no dia 7 de maio. Jorge Sampaio, durante o seu primeiro mandato presidenci­al, em julho de 1996 foi operado ao coração, por causa de um prolapso da válvula mitral. E Marcelo Rebelo de Sousa também foi submetido a uma intervençã­o cirúrgica, a 30 de outubro de 2019, para fazer um cateterism­o cardíaco.

“Cães” de Churchill

Grandes vultos do século XX padeciam de doenças mais ou menos graves. O Presidente francês De Gaulle era diabético e o ditador espanhol Franco tinha Parkinson. A autópsia de Lenine mostrou que o primeiro líder da União Soviética sofrera tantos enfartes que o seu cérebro mostrava um generaliza­do estado ateroscler­ótico e os seus sucessores no Kremlin também desenvolve­ram patologias complicada­s: Estaline morreu com uma hemorragia cerebral, Khrushchev tinha hipertensã­o e ateroscler­ose, Brejnev registava colesterol alto e sofria de hipertensã­o. Oscilando entre estados de humor ou de irascibili­dade e momentos de profunda melancolia – uns “abatimento­s” a que chamava os seus “cães negros” (“black dog”, expressão cujo sentido é demonstrar que, assim como um cachorroéo melhor amigo do homem, a depressão também acompanha sempre a sua vítima) – Churchill era, certamente, bipolar.

Antes de começar a Segunda Guerra Mundial, na Conferênci­a de Munique, reuniam-se quatro doentes: o míope e hipertenso ‘fuhrer’ Hitler, o abúlico Presidente francês Daladier, o maníaco e depressivo primeiro-ministro britânico Chamberlai­n e o sifilítico ‘duce’ italiano Mussolini. Quase no final do conflito, quando os “Três Grandes” se encontrara­m e mI alta, o americano Roosevelt estava numa fase avançada de ateroscler­ose cerebral, o inglês Churc hill tinha sofrido há pouco uma angina de peito e o russo Estaline (a cara tinha marcas davarío la quesofr era em criança ), nos meses seguintes, teve cinco enfartes do miocárdio. Apesar de ser uma das promessas eleitorais de Mitterrand a um país ainda abalado porque Pompidou morrera em pleno mandato devido à cancerígen­a macroglobu li nem ia deWaldenst­röm, sublinhand­o que seria divulgada uma

António Maria Baptista teve uma apoplexia no Conselho de Ministros

Comissão para declarar se o ocupante da Casa Branca está incapaz não nasce apenas da infeção de Trump. Biden já foi operado a dois aneurismas

informação médica, de seis em seis meses, sobre o seu estado de saúde, só ao fim de 11 anos é que o público soube que ele tinha um cancro da próstata, quando foi sujeito a uma intervençã­o cirúrgica em setembro de 1992.

Tudoin dica queReagan só terácomeça­do a ter sintomas claros de Alzheimer após ter abandonado a Presidênci­a. Nos seus dois mandatos, além do cancro do cólon e do tumor na próstata, pode ter começado a desenvolve ruma demências enil,carac terística da velhice e que parece ter marcado igualmente a última década devida do“grande timoneiro” chinês Mao Tsé-tung.

Ao longo dos tempos houve, evidenteme­nte, inúmeros doidos no poder, do imperador romano Calígula a Luís II daBa viera, ou‘ serialkill­ers ’, como o huno Átila ou o comunista cambojano Pol Pot. E isto é só uma pequena parte do que se sabe, pois, como sentenciar­ia o escritor francês Henry de Montherlan­t: “Falam-nos do nariz de Cleópatra. Não nos falam das hemorroida­s de Richelieu.”

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