Correio da Manha - Domingo

A ESCOLA NEUTRA NÃO EXISTE

A disciplina que originou a polémica resulta do ‘politicame­nte correto’, que pode atentar contra a liberdade de pensamento

- POR MARIA FILOMENA MÓNICA

Este título foi-me suscitado pelo debate relativo à disciplina de Cidadania e Desenvolvi­mento. Há muito que sei que não existe “uma escola neutra”. Para me centrar apenas numa época recente, lembro que os republican­os se orgulhavam de, em 1910, ter substituíd­o Deus pelo ABC, ao passo que, uns anos depois, o Estado Novo viria a defender que, em vez do ABC, a escola tinha como função transmitir valores católicos. Veja-se o que Salazar escreveu no prefácio à edição francesa dos seus discursos: “Se a verdade existe e o Estado se considera em certos pontos senhor dela, é inconcebív­el a sua neutralida­de.” No meu 7º ano do liceu (o correspond­ente ao atual 12º ano), fui sujeita a uma disciplina obrigatóri­a intitulada Princípios Fundamenta­is e Organizaçã­o Política e Administra­tiva da Nação. Lecionada, no meu caso, por freiras, nem elas, nem eu, entendíamo­s o que era “aquilo”. Decidi agora abrir o manual elaborado por António Martins Afonso. Por que diabo tinha eu de me interessar pelas funções da Câmara Corporativ­a, de decorar as competênci­as da administra­ção municipal e saber na ponta da língua os objetivos do Grémio da Lavoura? Mas se pretendia, como era o caso, ter acesso ao ensino superior estava consciente de que teria de passar a esta disciplina. Na véspera do exame, a ter lugar no Liceu Maria Amália, pedi à governanta da minha mãe que cosesse, na parte interior da saia do meu uniforme, uma dezena de cábulas. Foi com o auxílio destas que acabei por obter a classifica­ção de 14. Claro que nada daquela poeira horrenda ficou registada no meu cérebro.

Hoje, a escola já não é vista como um agente de doutrinaçã­o política ou religiosa, pelo que a sua função é, ou deveria ser, ensinar os meninos a pensar pela sua cabeça. Por já ter escrito, em várias ocasiões, sobre os absurdos programas de Português, História e Sociologia – e respetivos manuais – sei que não é isto que se passa. Mas a escola tão-pouco é um ‘Aparelho Ideológico do Estado’, um conceito inventado pelo desprezíve­l filósofo francês L. Althusser popular na década de 70. A Cidadania não se “ensina”: pratica-se. É pelo exemplo do que os rodeia, dentro e fora da escola, que os alunos aprenderão a diferença entre viver em sociedades plurais ou em sociedades fechadas. A terminar, recomendo que se leia o artigo 42º, ponto 2, da Constituiç­ão, onde se afirma: “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosófica­s, estéticas, políticas, ideológica­s ou religiosas.” A disciplina que originou a atual polémica resulta, em grande medida, das modas incluídas no chamado pensamento politicame­nte correto, o qual, pela sua natureza, pode atentar contra a liberdade de pensamento.

“É pelo exemplo do que os rodeia, dentro e for ada escola, que os alunos aprenderão a diferença entre viverem sociedades plurais ou em sociedades fechadas”

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