Correio da Manha - Domingo

“O António tinha o seu lado narcísico”

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Na primeira vez que apareceu em público, enquanto cantava ‘Toma o Comprimido’, o excêntrico artista, no timbre da voz, na forma como dançava e na indumentár­ia escolhida, atirava smarties à plateia do ‘Passeio dos Alegres’, o programa de Júlio Isidro. Portugal nunca tinha visto nada assim. No fim da década de 70 e até 1984, Teresa Couto Pinto foi “agente, fotógrafa, amiga e cúmplice de António Variações”, como conta no prefácio a biógrafa Manuela Gonzaga, que assina os textos da fotobiogra­fia – editada pela Oficina do Livro – do meteorito que sempre soube que “o corpo é que paga”. Morreu em 1984, aos 39 anos, de complicaçõ­es surgidas após ter sido diagnostic­ado com a doença da década, a provocada pelo vírus do VIH. Teresa Couto Pinto respondeu à entrevista por email.

Como surge este livro?

É um projeto de há vários anos. Precisou de um período de amadurecim­ento e de reunir as condições necessária­s para a sua edição com a qualidade editorial que ele merece. Não foi um projeto fácil de viabilizar. As editoras atravessam momentos difíceis e só foi possível publicar este livro com o apoio de um mecenas e do Theatro Circo de Braga.

Como fez a seleção das fotografia­s?

O acervo fotográfic­o agora reunido neste livro é constituíd­o pelas fotografia­s tiradas por mim durante os dois anos e meio da carreira meteórica do António Variações. Período em que fui além de sua amiga, sua agente e fotógrafa. Não tinham uma ordem cronológic­a específica e portanto tornava-se difícil mostrá-las de uma maneira compreensí­vel. Assim, pela sua disparidad­e, resolvi dividi-las por temas. Facilitou a arrumação no livro e permitiu-me falar de cada sessão fotográfic­a num contexto mais alargado.

Porque é que não se deve deixar `morrer' a figura de António Variações?

O António deixou-nos um legado muito rico. Era um poeta e um compositor talentoso, apesar de nem sempre ter sido compreendi­do. Toda a gente sabe quem foi ou ouviu falar dele. A exuberânci­a da sua figura, a sua música que causou uma estranheza por ser tão diferente, as letras das suas canções cheias de sabedoria com as quais é fácil identifica­rmo-nos são um legado precioso que tem de ser conservado, acarinhado e perpetuado. A verdade é que deixou uma marca indelével em todos nós. Tornou-se um ícone de várias gerações. A geração atual continua a ouvi-lo e a identifica­r-se com a sua música. É nossa obrigação perpetuar esse legado para memória futura.

Quando é que o viu pela primeira vez? Que idade tinha a Teresa e quem era então?

Já conhecia o António de vista. Ele trabalhava no Baeta, no Centro Comercial de Alvalade, e já tinha reparado na figura exótica dele que era uma atração para os miúdos da Escola Eugénio dos Santos que se encostavam ao vidro para o ver enquanto ele cortava cabelos. Eu tinha acabado de me separar e tinha voltado para casa da minha mãe com a minha filha de 3 anos. Conheci pessoalmen­te o António só em 1979 quando trabalhava numa loja de um minicentro comercial na Rua Castilho. Era um local constituíd­o por pequenas lojas de antiquário­s, estilistas e artesãos. Ele entrou para comprar uma peça de roupa na loja onde eu trabalhava e para visitar os seus amigos do Bairro Alto que ali tinham loja. Como tinham saído todos para almoçar, ficámos na conversa à espera que chegassem.

Qual era a relação de António Variações com a fotografia, como se comportava enquanto objeto fotografad­o?

O António tinha o seu lado narcísico. Cultivava o corpo e tinha or

A sua figura exótica era uma atração para os miúdos da escola

A carreira de António Variações foi curta. Os êxitos perduram até hoje. Entre 1981 e 1984, Teresa Couto Pinto foi agente e fotógrafa do artista que morreu cedo demais. As suas fotografia­s, muitas delas inéditas, são agora publicadas em livro

“Foram anos intensos. O António era um meteoro em ascensão

gulho nele. A fotografia valorizava esse corpo e a roupa que criava. Era também uma ferramenta de trabalho. Era uma maneira de ele ter, através dela, a imagem que os outros tinham dele. A imagem dele ao espelho não lhe era suficiente, pois de alguma maneira eram os olhos dele que viam o reflexo devolvido. Ele queria ver através dos olhos de quem o olhava. E isso só a fotografia lhe podia dar.

Como foram feitas as fotografia­s das sessões que integram o capítulo `O Corpo'? Como foi a disponibil­idade do artista?

Essa fotos foram tiradas em minha casa. O António tinha uma agenda muito preenchida e o tempo disponível entre gravações, barbearia e ensaios com a banda era cada vez mais reduzido. Entretanto, eu tinha mudado para Oeiras. Combinámos uma sessão em minha casa. Queria fazer umas fotos que pudessem ser utilizadas num futuro trabalho, com umas calças rasgadas. As outras fotos do corpo foram tiradas entre mudanças de adereços e de roupa. O António tinha uma relação muito natural com o corpo. Foi muito fácil fotografá-lo sem roupa sem que as fotos ficassem vulgares.

Como descreveri­a os três anos em que foi sua agente e fotógrafa? Conte-nos um episódio paradigmát­ico desses anos, no início da década de 80.

Foram anos intensos. O António era um meteoro em ascensão. Era também uma pessoa muito enérgica e cheia de vida. Os dias para ele eram sempre curtos para o tanto que havia para fazer. Não recusava desafios nem propostas para cantar e nem sempre foi fácil gerir-lhe a agenda sobrecarre­gada.

Assisti a vários episódios engraçados com o António, sobretudo situações de rua. Não lhes chamaria paradigmát­icos, mas eram ilustrativ­os da personalid­ade dele. A sua maneira de vestir provocava comentário­s nem sempre agradáveis à sua passagem. O António nem sempre deixava passar. Respondia com um sorriso e alguma pergunta feita num tom simpático e jocoso que desarmavam completame­nte o autor do comentário. A surpresa desta atitude inesperada era tão grande que a pessoa acabava muitas vezes a apertar-lhe a mão e despedia-se com um sorriso no rosto.

Como descreveri­a o meio artístico da época? E as noites de Lisboa de então?

Era uma época de criativida­de e arrojo. O Bairro Alto e o Príncipe Real eram os locais escolhidos por artistas, intelectua­is , estilistas, gente do cinema e do teatro, da música e da dança que aí assentaram residência, locais de trabalho ou lojas. Os cafés da zona e os espaços noturnos tornaram-se rapidament­e locais conhecidos e pontos de encontro, onde uma rotina diária permitia, dependendo da hora do dia ou da noite, saber quem estava onde. A noite era inundada de seres coloridos e ousados que exibiam as últimas criações de moda. A música era importada, mas também se valorizava e se ouvia música portuguesa. A mistura de personalid­ades e de tendências era tão grande que estes locais rapidament­e se tornaram numa zona icónica da cidade de Lisboa.

Durante o tempo em que o fotografou antecipou que fazia o registo d e u m h o me m q u e me r e c i a a posteridad­e?

Na altura não tinha essa consciênci­a. Não previa o que viria a acontecer. Para mim o António estava em início de carreira. Haveria muitas mais fotografia­s e um futuro sem prazo.

Como foi o artista na doença?

É difícil falar nesse período tão sofrido. Sobretudo pela impotência que sentimos por não ter podido aliviar a dor de um amigo em sofrimento.

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2 Uma das fotos da sessão de nu. “Foi muito fácil fotografá-lo sem que as fotos ficassem vulgares”, diz Teresa
1O l i vr o reúne fotografia­s dos anos de convivênci­a entre Variações e Teresa Couto, muitas nunca antes publicadas 2 Uma das fotos da sessão de nu. “Foi muito fácil fotografá-lo sem que as fotos ficassem vulgares”, diz Teresa

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