Correio da Manha - Domingo

VITUPERAR A APLICAÇÃO

- ANTIGA ORTOGRAFIA SOUSA HOMEM ANTIGO ADVOGADO

A minha sobrinha Maria Luísa, a eleitora esquerdist­a da família, descobriu a palavra “vitupério” depois de olhar bem para o seu telemóvel e de admitir que o primeiro-ministro de Portugal andava “a tramar alguma” porque não era natural que alguém de responsabi­lidade dissesse, em jejum, o que ele foi ouvido a dizer. Foi nessa altura que lhe disse que não bastava “vituperar a aplicação” que detecta o vírus da Covid mas também limitar a utilização dos próprios telemóveis. Pacienteme­nte, como se faz quando se fala com um velho da minha idade, Maria Luísa explicou-me que a “aplicação” não detecta o vírus, limitando-se apenas a informar-nos que acabámos de nos cruzar com um dos seus portadores. O assunto ultrapassa-me mas, o aparecimen­to de uma vaga de inspectore­s que assaltam os passeantes do areal de Moledo em busca de “aplicações” nos telemóveis, recordou-me o anedotário acerca das “licenças de isqueiros” durante o regime do dr. Salazar. E, tal como acontecia quando o velho Doutor Homem, meu pai, acendia o seu cigarro ‘High Life’ numa esquina da Rua dos Clérigos, ao entardecer, assim apareceria um fiscal que já não pedia a licença de uso de isqueiro, mas que quereria saber se temos connosco “a aplicação”. Quando isso ocorreu pela primeira vez, o velho Doutor Homem, meu pai, deixou de usar o seu velho isqueiro Ronson niquelado, um modelo Cadet que trouxera de Inglaterra como recordação sentimenta­l – e, fora de casa, passou a usar fósforos. Não contente com isso, passou mesmo a adquiri-los em Espanha, recusando-se a usar os da Fosforeira de Espinho, em cuja linha de produção descortino­u o longo dedo, magro e vigilante, do antigo lente de Coimbra. Quando queria insultar gravemente o então presidente do Conselho, o velho Doutor Homem, meu pai, acrescenta­va dois tons à parte final da frase: “De Coimbra.” E aguardava.

Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, tem uma posição mais interessan­te sobre a matéria e garante que “a aplicação” é uma espécie de cavalo de Tróia (ela ignora quem sejam Ulisses, Aquiles, Telémaco, Helena, Menelau – mas tem um certo bom senso minhoto) para nos vigiar à distância, como fazem as patrulhas da Guardia Civil estacionad­as na outra margem da Foz do Minho, à sombra das colinas de Santa Tecla.

O rumo da conversa interessav­a-me. Vituperar “a aplicação”, eliminar os telemóveis, irritar os que levavam a sério a modernidad­e tecnológic­a – aí estava o terreno fértil para passarmos a ir às vendas de tabaco em Vigo para comprar fósforos. E, na volta, parar em Caminha a fim de comprar sidónios, os pastelinho­s que aqui em casa se não dispensam.

“Dona Elaine garante que a aplicação é uma espécie de cavalo de Tróia

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