Correio da Manha - Domingo

UMA HISTÓRIA SIMPLES

Nasceram na transição da monarquia para a república, viram gente morrer de tuberculos­e e da pneumónica. Agora, aos 110 e 108 anos de idade, comunicam com os seus por videochama­das. “Esta gripe, se entra pela porta, sai logo pela janela”

- Por Fernanda Cachão

Albano e Alberto Andrade, de São Miguel de Souto, têm 228 anos - a soma matemática impõe-se, pois figuram no livro dos recordes do ‘Guinness’ como os irmãos que, juntos, somam mais anos em todo o Mundo. Os Andrade nasceram numa aldeia de Santa Maria da Feira, quando Portugal se despedia a ferro e fogo da Monarquia e em tumulto dava aos boas-vindas à República; viveram a infância durante a gripe espanhola, atravessar­am os anos da ditadura, despediram-se dos carros de bois e andaram de mota, pegaram na novidade do telefone e agora comunicam com os seus por videochama­da. Com 100 anos, Albano, o mais velho, que está na Wikipédia na lista dos supercente­nários, ainda ia ao banco pôr na ordem o gestor de conta. A última vez que a família dos Andrade se reuniu foi em agosto, numa brecha da pandemia, para celebrar um batizado.

Albano nasceu a seguir ao regicídio, já no curto reinado de D. Manuel II, quando Portugal conhecia a instabilid­ade de quatro governos, no ano de 1909, o da Carbonária, braço armado da revolução republican­a que haveria de triunfar a 5 de outubro de 1910. No ano seguinte, também em dezembro, nascia Alberto, o mais pequeno dos 12 filhos de António Domingos Andrade Júnior e Maria Ferreira, casal de São Miguel de Souto, em Santa Maria da Feira – viveriam ambos até depois dos 90. Na casa onde nasceram, Albano e Alberto atravessar­am o século que trouxe o carro a gasolina, a televisão e os antibiótic­os e mais ainda a Internet que lhes permite agora, já em 2020, no ano da pandemia da Covid-19, falar com a restante família. O mais velho, Albano, nunca nos seus 110 anos tomou um Ben-u-Ron. Ambos, em 2000, puderam despedir-se de Olímpio, de 84 anos, irmão dos sobrinhos de Lisboa, um deles também centenário. Estes filhos da irmã mais velha de Albano e Alberto, que morreu tuberculos­a, ficaram órfãos para criar na casa de São Miguel de Souto e criados fizeram-se a África, para só voltar depois do 25 de abril. A doença de um deles foi das poucas vezes que Albano se predispôs a sair de casa. Já Alberto, quando foi com a família ao Algarve, disse que se pudesse ficava lá. Se o primeiro evita excessos alimentare­s, já o segundo não faz por isso - “e nem eles sabem o segredo de uma vida tão longa, mas quando um for, o outro irá a seguir”. A última vez que este ramo dos Andrade se reuniu foi pelo batizado de Luísa, a 9 de agosto, na folga de verão dada pela Covid-19. Os irmãos Albano e Alberto comeram e beberam e ainda puderam fotografar-se com filhos, netos e bisnetos, todos juntos, nunca nenhum deles provavelme­nte supondo que, por esta altura, magicassem já como se poderão celebrar os aniversári­os de 2 e 14 de dezembro, e além do mais

O Albano era quem tratava do negócio. Com 100 anos ainda foi ao banco meter na ordem o gerente JOANA ANDRADE OLIVEIRA, NETA

O meu tio queria que fizéssemos a universida­de PALMIRA, FILHA DE ALBERTO

o próprio Natal. “Nós não lhes demos as notícias todas, dissemos que é uma gripe muito forte para eles perceberem porque não os visitamos tanto como os visitávamo­s e andamos de máscaras. Eu, então, ia vê-los todos os dias. Mas uma das filhas está lá com eles e temos ainda o apoio do serviço social do lar, e aos fins de semana as outras filhas também lá vão. Os netos visitam-nos pontualmen­te. E fazemos todos muitas videochama­das e eles não se sentem isolados, além do mais a Mira também ainda lá está”, conta a neta Joana, referindo-se a Palmira, a avó, sobrinha-neta dos irmãos que casou com o mais novo, 20 anos mais velho do que ela, mas já lá vamos.

Joana Andrade Oliveira, de 34 anos de idade, neta de Alberto, tudo fez para ver os nomes do avô e do tio-avô inscritos no ‘Guinness’; lá figuram como os irmãos cujas idades, juntas, somam mais anos. Albano tem lugar ainda na Wikipédia entre os supercente­nários, e um dos poucos do sexo masculino. “O meu avô diz que o segredo de chegar até tão tarde é... não morrer antes. Sempre foi um brincalhão. Digo-lhes que são dos mais velhos do País e do Mundo e para eles é normal, para quem está de fora é que não é. Quando chegaram aos 100, o meu avô brincava com o irmão: dizia que Ele lá em cima não queria nada com eles, e o irmão não gostava nada de o ouvir. Mas são ambos religiosos, não beatos, embora rezem o terço todos os dias, nunca foram consigo ou com os seus de costumes rígidos. E, embora inseparáve­is, são em tudo diferentes um do outro.”

Albano e Alberto foram criados como “a maioria dos centenário­s”.

“Eles trabalhara­m muito, mas ao seu próprio ritmo. Se virmos as biografias dos centenário­s percebemos que nenhum deles tinha patrões, viviam da agricultur­a ou vendiam peixe, e todos eram religiosos. O meu pai, por exemplo, levantava-se às 6h da manhã para trabalhar, mas se fosse às 6h10 não havia problema com ninguém; eu, que entro às 9h30, se me atraso 10 minutos tenho de o justificar. Os centenário­s trabalhava­m de sol a sol, mas não tinham stress”, defende Felicidade, de 60 anos, mãe de Joana, que com a irmã Palmira, de 61, falou com a ‘Domingo’ por videochama­da num dia de folga, esta semana. Faltam ainda Manuela, 57 anos, e Alberto, 54 anos de idade, os restantes dos quatro filhos de Alberto Andrade e Palmira, que foi ajudar nas lides domésticas os dois solteirões que viviam com a mãe numa casa de lavradores de São Miguel de Souto, e um dia ouviu a proposta do tio-avô mais novo se ela com ele se casaria. “Ela foi perguntar ao padre, que disse que sim, mas como eram sobrinha-neta e tio-avô foram casar a Gaia, quando tiveram autorizaçã­o.” Alberto tinha 47 anos.

O pipo morreu

Albano e Alberto foram crianças da sua época, comiam do que havia, brincavam como todos os outros. Aos 6 anos, Alberto teve um acidente com o carro de bois que levava o saibro para fazer o campo do Ovarense e ficou três dias em coma. “Fez a vida normal, mas ficou para sempre afetado, paralisado do lado esquerdo da cinta para baixo e do lado direito da cinta para cima, vista encostada ao nariz, mas superou e ficou a falar lindamente, embora arrastasse para sempre a perna um bocadinho e, por isso, na escola chamavam-lhe o Manquinho”, conta Palmira. Mas foi este irmão o homem do trabalho, na lavoura, enquanto o mais velho, Albano, que completou também o quarto ano, acrescento­u o curso de regente e pôde dar aulas. Era este que tratava das burocracia­s, do negócio da venda do milho, da batata e do alambique que mantiveram muitos anos. Com 100 feitos foi ao banco pôr na ordem o gerente. “Durante a ditadura houve uma fome muito grande e os alimentos dos lavradores foram recolhidos para dar ao Estado. O Albano esteve responsáve­l pela distribuiç­ão das senhas durante o racionamen­to”, conta Felicidade. Em 1968, o ‘Jornal de Notícias’ dava uma página inteira à notícia de um automóvel matrícula OM-11-38, de um dos elementos da banda de São Miguel de Souto, onde seguiram outros cinco colegas de passeio à Barrinha “cheia de banhistas e turistas”. No regresso, numa passagem de nível, o carro passou quando aberta a cancela pelo guarda, depois de outros dois automóveis que seguiam à frente. Neste OM-11-38 viajava Alberto. Um “espantoso estrondo” anunciou o embate com uma automotora. As fotografia­s no jornal mostram a tragédia que fez dois mortos na passagem de nível de Esmoriz. “O meu avô ficou com ferimentos ligeiros, mas nunca recuperou do desgosto. Lembra-se sempre da data. Um dos mortos deixou mulher grávida e cinco filhos.”

São Miguel de Souto, a norte da Beira Litoral, elevada a vila em 1993, pertence ao concelho de Santa Maria da Feira, de que dista cinco quilómetro­s. Em 1849, um grupo de 15 ilustres da terra fundaram a Banda de Música de Souto, à frente dos quais se destacou o padre Francisco

Leite de Andrade. Foi por isso natural, pois outra coisa não havia que os entretives­se, que os irmãos pertencess­em à banda, fundada pelo antepassad­o. Alberto tocava saxofone, Albano violino e ainda era maestro. “A certa altura foram fazer uma festa para o Norte. Foi em Viana do Castelo, uma coisa de um lavrador que os pôs a dormir no alpendre. Deu-lhes um pipo mas, logo no fim do primeiro dia, o vinho acabou e então pôs-se o problema de como dizer ao lavrador que tinham bebido tudo e que por isso queriam mais. Foram todos para a eira e puseram o pipo no meio e à volta dele tocaram-lhe a marcha fúnebre, pois o pipo tinha morrido.

O meu avô sempre adorou contar as histórias da sua vida, sempre com muito sentido de humor. Em 2008 teve uma pneumonia e o médico dizia que ele estava a morrer, que a gente se tinha de preparar para tudo, mas a gente não o via a morrer. E não morreu. Depois passaram os 100, os 104 e ele comunicou-nos que ia deixar de contar.”

Um carro para a filha

As filhas e a neta falam de dois homens, “ambos, indistinto­s e como pais”, exemplos sempre “atualizado­s e mesmo à frente do seu tempo”. “O meu pai só casou aos 47 anos, mas chegou a dizer: ‘para quê casar, junta-te’. Em 1970, o meu tio queria que as sobrinhas fossem fazer um curso superior e à minha irmã, que se divorciou, os dois disseram-lhe: ‘entra porta a dentro que esta casa é tua’.”

Em 1978, a filha mais velha, que foi mandada tirar a carta de condução, já tinha à espera carro, um dos dois primeiros a circular por São Miguel de Souto, quando os irmãos continuava­m a conduzir as motorizada­s. “Nunca os ouvir dizer que antigament­e é que era bom. Quando veio o telefone, o meu avô disse logo ‘isto é muito lindo, mas devíamos estar a ver as pessoas que estão do outro lado’, já tinha visão para o que agora nos põe a vê-los durante a pandemia. Ambos têm saudades dos amigos, dos contemporâ­neos, todos já mortos, mas nunca lamentam o tempo de agora e sempre acompanhar­am as notícias: o meu avó através da rádio, o meu tio-avô na televisão.” Aos 108 anos, Albano fazia a barba, tomava banho sozinho e podia continuar a gabar o hábito da frugalidad­e como receita para se perdurar no tempo, mesmo que desmentido pelos anos do irmão, Alberto, que se pela até hoje por leitão e chispe de porco e só a fratura do fémur o pôde acomodar na cadeira de rodas.

Ambos têm a certeza de que se a tal gripe de que lhes falaram “entrar pela porta, sai logo pela janela”.

Os centenário­s trabalhava­m todos muito. Mas pelas suas biografias vimos que eles não tinham patrões nem stress FELICIDADE, FILHA DE ALBERTO

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2015. As fotografia­s antigas mostram o casal Alberto e Mira, 20 anos mais nova, e três dos quatro filhos de ambos. Em baixo, os irmãos em novos com a mãe que viveu com eles na casa da família em São Miguel de Souto, até à sua morte. Em baixo, os irmãos e a restante família no batizado, em agosto último, da bisneta Luísa. Foi a última vez que a família pôde estar toda junta
Albano e Alberto Andrade com uma bisneta em 2015. As fotografia­s antigas mostram o casal Alberto e Mira, 20 anos mais nova, e três dos quatro filhos de ambos. Em baixo, os irmãos em novos com a mãe que viveu com eles na casa da família em São Miguel de Souto, até à sua morte. Em baixo, os irmãos e a restante família no batizado, em agosto último, da bisneta Luísa. Foi a última vez que a família pôde estar toda junta
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