Correio da Manha - Domingo

A 4 DE DEZEMBRO ASSINALAM-SE 40 ANOS DA TRAGÉDIA DE CAMARATE.

A 4 de dezembro passam 40 anos sobre a tragédia de Camarate. O processo judicial é considerad­o histórico e está na Torre do Tombo. Os destroços da aeronave pertencem à PSP, mas têm-se revelado incómodos para muitas entidades ao longo do tempo

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O PROCESSO JUDICIAL PRESCREVEU EM 2000, MAS, POR TER INTERESSE HISTÓRICO, FOI ENVIADO PARA A TORRE DO TOMBO. JÁ OS DESTROÇOS DO CESSNA, QUE PERTENCEM À PSP, REVELARAM-SE INCÓMODOS. ESTIVERAM NO AEROPORTO DE LISBOA QUE OS DESPACHOU PARA UM HANGAR EM VISEU, ONDE ESTIVERAM ATÉ 2018 PORQUE A POLÍCIA NÃO TINHA ESPAÇO. EM 2016, UM OFICIAL DA PSP TROUXE DUAS PEÇAS NUM CARRO PRIVADO

Quinta-feira, 4 de dezembro de 1980. Estão seis graus de temperatur­a e o céu está limpo. O bimotor Cessna 421A, de matrícula venezuelan­a YV-314P,descoladoa­eroportode­lisboa para a sua última viagem, às 20h16m30. Até ao impacto passam apenas 26 segundos. O avião, que tinha como destino o Porto, cai no Bairro das Fontainhas, em Camarate. Lá dentro viajavam o então primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, a sua companheir­a, Snu Abecassis, o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa e a mulher, o chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia, e os dois pilotos do aparelho. Passaram 40 anos e a dúvida permanece. Acidente ou atentado? Ainda no dia 4 de dezembro, o Ministério Público abriu um inquérito, cuja investigaç­ão ficou a cargo da Polícia Judiciária. Cinco dias depois, um relatório preliminar da PJ considerav­a que não havia indícios de crime. Uma tese que iria manter-se até ao fim, apesar de permanecer­em dúvidas sobre o que, de facto, aconteceu naquela curta viagem. Sá Carneiro estava a caminho de um comício do general Soares Carneiro, candidato apoiado pela Aliança Democrátic­a (AD) nas eleições presidenci­ais que se realizaria­m três dias depois.

Numa tentativa desesperad­a para chegar à verdade, a Assembleia da República iniciou um processo de fiscalizaç­ão sobre a tragédia, em novembro de 1982. Ao longo de 33 anos realizaram-se 10 comissões parlamenta­res de inquérito – nunca um tema foi tão escrutinad­o pelos deputados da Nação -, a maioria com conclusões a pender para a tese de atentado. Mas o procedimen­to criminal viria a prescrever: foi essa a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa em junho de 2000, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça a 24 de maio de 2006. E a ideia de procurar um responsáve­l por um eventual ato de sabotagem sofreu um revés.

O processo judicial, que chegou a estar na despensa do tribunal de Loures, segundo uma denúncia do advogado dos familiares das vítimas, Ricardo Sá Fernandes, é agora uma peça processual de interesse histórico e está devidament­e guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, ao lado do processo relativo ao assassinat­o de Humberto Delgado. Está distribuíd­o por 58 caixas, no piso 4 e nenhuma é suficiente­mente grande para conter os destroços do avião, prova com uma dimensão consideráv­el, que não cabe numa prateleira, ao lado de provas mais tradiciona­is, como armas, gazuas, notas falsas... Mas onde está o avião que vitimou dois estadistas portuguese­s? Uma coisa é certa: não está no mesmo hangar do aeroporto de Lisboa para onde foi transporta­do inicialmen­te e onde decorreu a maior das peritagens ao aparelho. Os destroços da aeronave foram entregues, por despacho judicial, à Direção Nacional da PSP. Algumas peças e componente­s fazem parte do

PSP recebeu os destroços no dia 30 de janeiro de 2018

espólio do futuro museu da PSP, nas antigas instalaçõe­s do Comando Metropolit­ano de Lisboa, na Rua Capelo. Em março passado, poucos dias antes do início do confinamen­to, este espaço era constituíd­o apenas pela sala António Aleixo (poeta popular e polícia) – inaugurada em junho de 2014, aguardando-se, desde então, a sua ampliação. É nestas instalaçõe­s - um museu que ainda não é museu - que estão, pelo menos, duas peças dos destroços: aquilo que aparenta ser parte dos manípulos do aparelho e parte do depósito de combustíve­l que estava instalado na asa da aeronave. Estão embrulhada­s numa manta e depositada­s numa sala. A PSP recusa-se a dizer onde está o resto dos destroços.

Destroços incómodos

A forma como as peças chegaram a este espaço, no Chiado, foi algo amadora. Foi o próprio responsáve­l do museu que, em 2016, se pôs a caminho, na sua carrinha particular, e as foi buscar ao Aeródromo Municipal de Viseu. Só trouxe duas porque não cabia mais nada na viatura. O resto dos destroços, que estavam num hangar do Gabinete de Prevenção e Investigaç­ão de Acidentes com Aeronaves - que hoje investiga também os acidentes ferroviári­os, o GPIAAF - ficou para trás. A mesma entidade garante que entregou o material dois anos depois.

“No dia 30 de janeiro de 2018, foram entregues à Polícia de Segurança Pública (PSP) várias paletes com o material correspond­ente aos destroços da aeronave CESSNA 421A, matrícula YV-314P, acidentada em Camarate no dia 4/Dez./1980, a qual se encontrava no hangar do GPIAAF em Viseu.” Como à data não havia nenhuma investigaç­ão em aberto, pergunta-se por que razão viajaram os destroços até Viseu para depois regressare­m. O GPIAAF ajuda a compreende­r: “Os destroços da aeronave em apreço assim como vários outros equipament­os não relacionad­os, estiveram no hangar do EX-GPIAA e do GPIAAF entre 9 de setembro de 2015 e 30 de janeiro de 2018, no âmbito da cooperação institucio­nal entre entidades públicas. Em 2015, deu-se a situação de, por motivos de gestão do aeroporto de Lisboa, os referidos destroços e equipament­os terem de desocupar o local que ocupavam naquela instalação aeroportuá­ria, tendo então sido acordado com o EX-GPIAA o seu depósito no hangar no aeródromo de Viseu até que a PSP encontrass­e local adequado.” As voltas que estes destroços já deram não dignificam a memória de quem perdeu a vida naquela tragédia. Uma das pessoas que mais mexeu no caso ao longo destes 40 anos e que até escreveu um livro sobre o assunto (‘O Crime de Camarate’), Ricardo Sá Fernandes, desconhece onde está a amálgama de chapa e de ferro que constitui os restos do Cessna, mas frisa a sua importânci­a: “Historicam­ente, acho que a verdade sobre este acontecime­nto nunca deve deixar de ser perseguida e acho que o conjunto dos destroços que sobraram desta ocorrência devem ser guardados. É uma obrigação do Estado preservar isto, para memória futura, para que amanhã outros investigad­ores, com outros meios e outras técnicas, possam emitir juízos periciais mais definitivo­s do que aqueles que hoje temos.” Olhando para os 40 anos que passaram, Ricardo Sá Fernandes diz que é “um grande desalento não ter conseguido ir mais longe”. “Fizemos o que pudemos, em Portugal parece que as mortes dos políticos ficam sempre ensombrada­s pela dúvida e não se consegue ir mais longe. Foi assim com o Rei D. Carlos, com o Sidónio Pais e o Humberto Delgado, parece que é uma sina.” Pedro do Ó Ramos, advogado, ex-secretário de Estado do Mar, relator da última Comissão Parlamenta­r de Inquérito à Tragédia de Camarate, lembra que a preservaçã­o dos destroços é importante para não se destruírem provas e que deveriam estar num museu. O advogado – que também desconhece onde está o resto do avião - lembra que foi no decurso da VIII comissão que uma equipa de peritos encontrou vestígios de explosivos em fragmentos do Cessna.

Historicam­ente, a verdade nunca deve deixar de ser perseguida e os destroços devem ser guardados RICARDO SÁ FERNANDES, ADVOGADO DOS FAMILIARES DA VÍTIMAS

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A tragédia ocorreu na noite de 4 de dezembro de 1980
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Destroços à guarda da PSP: parte dos manípulos e do depósito de combustíve­l

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