O INSTINTO DA LIBERDADE
Vultos que se movem por entre o nevoeiro e a chuva miudinha, à volta de carvalhos, castanheiros e pinheiros. Novos e velhos que se vão curvando e esgravatando a terra empanturrada de caruma e folhas molhadas. Olho vivo e muita experiência, andam à cata de míscaros, esse cogumelo selvagem de sabor único e intenso. É ouro para muita gente do concelho de Sátão, a capital do míscaro. Rende bom dinheiro e não é o confinamento obrigatório de fim-de-semana que os há-de impedir de ir à floresta em busca do precioso cogumelo.
Junto à vila do Sátão, Angelina vive com a mãe, D. Maria do Céu, enérgica senhora com 95 anos. É professora e ficou retida em casa devido a um caso de Covid na escola. (Sátão entrou agora na lista dos concelhos de risco. Havia apenas 242 infecções activas no concelho, mas o Governo, a demografia e a matemática justificaram medidas mais severas). Angelina, repleta de bom senso, toma as devidas precauções para proteger a senhora sua mãe. Usa máscara e tenta que D. Maria do Céu a use também. Não é fácil. D. Maria do Céu é desde sempre uma mulher rija e mexida. Passou a vida a tratar das suas terras, das hortas e das árvores; e durante décadas geriu uma clássica taberna. Sabe bem como tratar de míscaros e castanhas. E até sabe rezas para combater o mau olhado e outras maleitas do corpo e do espírito. Quem sabe se não há-de adaptar uma delas para o combate ao vírus que atazana toda a gente?! Do que D. Maria do Céu não sabe é dos desabafos recentes de Manuel Alegre, que não aceita o confinamento dos mais velhos, considerando que há “discriminação por idades na Saúde”. Diz ele que esta coisa do confinamento não depende da idade, “depende da fibra e da capacidade de resistência de cada um”. O velho socialista, sempre cioso da sua liberdade, sente-se preso em casa. Alegre vai nos 84 anos e, para D. Maria do Céu, é ainda um jovem. Esta semana, Angelina recebeu visitas ao portão, todos à distância. Gente de Lisboa que quer conhecer D. Maria do Céu. Angelina chama pela mãe, para que venha à janela. Grita bem alto, a senhora é meio surda. Nem ai nem ui. Já preocupados, seguem em busca da imprevisível mulher. E vão dar com ela na horta, longe de casa, numa lufa-lufa a espalhar cinzas pelas couves, para afastar a bicharada. Despachada, máscara descaída, avança com pé leve a receber as visitas. A surdez leva-a a aproximar-se muito dos forasteiros, curiosa e risonha. É dia de confinamento. Angelina suspira, em jeito de desculpa. “Ossenhoressabemlá!játem95anos,masnãoaconsigo seguraremcasa!”
“É dia de confinamento, mas não a consigo segurar em casa!