Correio da Manha - Domingo

“MORRERAM 36 PESSOAS EM DOIS MASSACRES”

Os portuguese­s davam apoio nas fazendas de café e protegiam as gentes do Sul que migravam para trabalhar no Norte

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Embarquei dia 11 de abril de 1970, no `Niassa'. Seis dias depois, festejei os meus 20 anos a bordo. Fiz a maior parte da viagem na parte de cima do navio porque os porões não tinham condições. Cheirava a mofo e os colchões eram horríveis. Só íamos lá abaixo para comer no refeitório... com o prato a fugir de um lado para o outro. Estive primeiro na missão de Bembe, que foi abandonada pelos padres quando começou a guerra, e que ficava a cerca de de 400 quilómetro­s de Luanda. Fiquei lá ano e meio. Eu era motorista e, no primeiro mês, a minha missão era passear a filha do capitão, de 2 aninhos, e entretê-la no aquartelam­ento. Porém, alguns colegas não se davam bem com o clima, começaram a sentir-se mal e ficaram de baixa. Comecei a entrar na linha – como se dizia – e a ir também para o mato, fazer reconhecim­entos a fazendas e dar auxílio às populações que vinham do Sul de Angola para as colheitas do café, no Norte. Poucos dias depois de lá chegar, um cozinheiro morreu eletrocuta­do. Tínhamos arame farpado a toda a volta do refeitório por causa das hienas que, durante a noite, invadiam a cozinha à procura de comida. Ele, naquele dia, agarrou-se aos arames quando estava a encomendar os produtos para o dia seguinte. Com o vento, os fios de eletricida­de entraram em contacto com o arame farpado e ele ficou lá agarrado.

Mortandade

Quando tínhamos de dar apoio nas fazendas e andar pelo mato era muito complicado. Era do capim que partiam os perigos. Eles infiltrava­m-se lá dentro e começavam a surgir tiros por todo o lado. A gente nem os via. Entrei em matas muito complicada­s. Um dia, íamos precisamen­te numa picada, a poucos quilómetro­s da missão de Bembe, onde estávamos aquartelad­os, e começaram a surgir indivíduos de cor, a correr. Um deles tinha uma bala enfiada na testa – foi disparada de longe, quando tocou no homem já tinha perdido força e ficou à vista. Assustámo-nos, saímos dos carros à procura de refúgio, tínhamos quatro viaturas e eu ia na frente com o rapaz das transmissõ­es, que chamou a aviação. Os caças passaram aquela zona toda a pente fino e depois fomos mandados para o local onde as coisas tinham acontecido. Quando lá chegámos demos com um autêntico massacre. Havia uns 18 corpos de pessoas que andavam na colheita do café. E o encarregad­o deles, que era branco, estava nu e encostado a uma carrinha, crivado de balas dos pés à cabeça. Faziam coisas horrorosas.

Uns tempos depois fomos chamados para intervir noutra emboscada, mas a uma companhia africana. Igualmente terrível. Também morreram uns 18 e, depois de mortos a tiro, foram esquarteja­dos.

Às vezes também íamos às sanzalas medicar aquela gente, formavam bichas enormes. As dores deles eram ‘dói o dente’ e ‘dói a cabeça’, mas a maior parte não tinha nada e distribuía­mos vitaminas. Eles gostavam de nós, mas sabíamos que havia muita gente

Havia uns 18 corpos de pessoas que andavam na colheita do café. E o encarregad­o, que era branco, estava nu e crivado de balas dos pés à cabeça

infiltrada. À noite, víamos passar luzinhas e era o inimigo que ia às sanzalas reabastece­r-se.

Depois fomos transferid­os para a barragem das Mabubas, a 30 quilómetro­s de Luanda, e onde ficámos o resto da comissão. Também fazíamos reconhecim­entos e dávamos proteção às viaturas civis que chegavam de Luanda com géneros alimentíci­os. Aí já havia estradas alcatroada­s, muito diferente das picadas. Era muito complicado andar nas picadas. Demorava uma hora para fazer 100 metros, cheias de buracos e tínhamos de ver se havia minas.

Mas nem tudo foi terrível, aquela gente passou a ser uma família. Passávamos as noites a comer, beber e a cantar o fado. Na passagem de ano tínhamos uma corrida de S. Silvestre. E havia um concurso miss Mabubas, com alguns a vestirem-se de mulher... não tínhamos nada para nos divertirmo­s e inventávam­os.

Regressei de avião, a 17 de julho de 1972.

Nem tudo foi terrível e aquela gente passou a ser uma família

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COMISSÃO ANGOLA (1970/1972)
FORÇA COMPANHIA DE CAÇADORES 2693 BATALHÃO 2910 * INFO 72 ANOS, É CASADO, TEM UM FILHO E DOIS NETOS
NOME JOSÉ AUGUSTO LOURENÇO COMISSÃO ANGOLA (1970/1972) FORÇA COMPANHIA DE CAÇADORES 2693 BATALHÃO 2910 * INFO 72 ANOS, É CASADO, TEM UM FILHO E DOIS NETOS
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