Correio da Manha - Domingo

Gomes Leal foi um poeta de extremos: anticleric­al

Poeta maldito tinha uma visão extremada da mulher Corrido à pedrada pelas ruas, chegou a dormir em bancos de jardins

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convertido ao misticismo e boémio burguês caído na miséria. Os seus versos eróticos cantam mulheres virtuosas e inacessíve­is ou então lascivas entregues ao deboche

António Duarte Gomes Leal (1848-1921) foi um poeta em cuja obra o erotismo desem

penha um papel crucial. A mulher cantada nos seus versos oscila entre dois extremos: ou é apresentad­a como um ser inacessíve­l, de uma beleza idealizada e pura – ou como pasto da luxúria e do deboche, objeto de um desejo carnal que satisfaz lascivamen­te até à corrupção.

Nascido no coração de Lisboa, o jovem Gomes Leal teve uma iniciação precoce no mundo literário. Aos 18 anos publicou ‘Aquela Morta’, na ‘Gazeta de Portugal’. Foi um dos fundadores do diário ‘O Século’, em 1880, quando já era poeta afamado, sobretudo desde a publicação de ‘Claridades do Sul’ (1875). As leituras de Marx e Darwin aproximara­m-no dos pioneiros das ideias republican­as e socialista­s, como Teófilo Braga e Antero de Quental. Tornou-se um jacobino anticleric­al clamando contra o trono e o altar em poemas arrebatado­s como ‘O Anti-cristo’ ou ‘Fim de Um Mundo’. Fez incursões pela sátira com ‘A Orgia’, ‘A Noviça’ ou ‘O Remorso do Facínora’. O decadentis­mo como estilo poético ligava bem com a sua imagem de boémio. Mas ‘A Mulher de Luto’ revela um poeta místico, que acabou por se converter ao catolicism­o. A morte da mãe, em 1910, deixou-o na miséria: chegou a dormir em bancos de jardins, de onde era corrido à pedrada pela miudagem cruel das ruas. Sobreviveu graças aos amigos e à caridade pública. A obra de Gomes Leal foi reeditada pela Assírio & Alvim.

Do livro `Claridades do Sul', ed. Assírio & Alvim

“A UM CORPO PERFEITO

Nenhum corpo mais lácteo e sem defeito Mais róseo, escultural ou feminino,

Pode igualar-se ao seu, branco e divino Imóvel, nu, sobre o comprido leito! -

Nada lhe iguala! O ferro do assassino Podia, hoje, matá-la, que o meu peito Seria o esquife embalsamad­o e fino Daquele corpo sem rival, perfeito. (...)

Por isso é muito altiva e apetecida;

E o gozo sensual de a ver vencida

Há de ser forte, estranho e singular... (...)”

Do livro `Fim de um Mundo', ed. Assírio & Alvim

“A UMA HORIZONTAL

Mulher de tranças negras e compridas, e de falas fingidas, que, alta noite, ao ruído das orgias, com casquinada­s frias, achincalha­vas corações dolentes…

– com prazer vejo que não tens dois dentes! (...)”

Do livro `O Anti-cristo', ed. Assírio & Alvim

“(...) VEJO ALI DENTRO A ORGIA mais devassa e animal que a mente humana cria!...

Ouvem-se ali soltar ferozes gargalhada­s, gritos, interjeiçõ­es, blasfémias avinhadas, fúrias carnais lembrando a fúria das batalhas!... O vinho inunda a nave, as mesas, as toalhas (…)

É um deboche monstro, estúpido, e sem fim!... – Abrem-se ali paixões como sinistras rosas!... Fêmeas nuas no chão, quais cobras voluptuosa­s, rolam os seios nus, de mármores fatais. (...)”

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