Correio da Manha - Domingo

Mário de Sá-Carneiro foi o melhor amigo de

Frustração marca o erotismo na obra do poeta modernista

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Fernando Pessoa e um dos pioneiros da literatura modernista em Portugal. Na sua obra, as representa­ções da mulher refletem a tensão de desejos frustrados

O desejo é recalcado pela descrição de mulheres sensuais

Mário de Sá-carneiro (1890-1916) foi um poeta, contista e dramaturgo modernista, em cuja obra o erotismo ocupa um lugar singular, revelando uma tensão permanente marcada pela frustração do desejo (incluindo o desejo homoerótic­o), recalcado sobretudo através da descrição de orgias com a participaç­ão de mulheres sensuais em coreografi­as de uma luxúria escaldante. Escreveu a primeira peça de teatro – ‘Amizade’ – em 1910, com o colega Tomás Cabreira Júnior, que se suicidou pouco depois. Frequentou Direito na Universida­de de Coimbra, mas desistiu no primeiro ano, por não aguentar a “extrema chatice”. Voltou para Lisboa, onde conheceu Fernando Pessoa, que se tornaria o seu melhor amigo, pouco antes de partir para Paris, em 1912. Na capital francesa escreveu as suas obras principais, com destaque para ‘A Confissão de Lúcio’, ‘Dispersão’ e ‘Céu em Fogo’. Em 1915, colaborou na revista ‘Orpheu’, o que lhe valeu ser achincalha­do pelos críticos que chamavam “maluquinho­s” aos modernista­s. Incompreen­dido – tinha a certeza de que o valor da sua obra acabaria por ser reconhecid­o –, tornou-se uma “consciênci­a torturada num labirinto psicológic­o”, segundo Natália Correia. No poema ‘Fim’ escreveu o verso: “A um morto nada se recusa”. Suicidou-se em Paris, em 1916, depois de explicar pormenoriz­adamente o seu gesto ao amigo Fernando Pessoa. A correspond­ência entre os dois poetas está publicada no livro ‘Em Ouro e Alma’ (ed. Tinta da China).

As suas pernas despertava­m desejos brutais de as morder

Do livro `Poesia Completa de Mário de Sá-carneiro', ed. Tinta da China

“Como eu não possuo

(...) Como eu desejo a que ali vai na rua,

Tão ágil, tão agreste, tão de amor...

Como eu quisera emaranhá-la nua, Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,

Toda sem véus, a carne estilizada

Sob o meu corpo arfando transborda­da, Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...

Eu vibraria só agonizante

Sobre o seu corpo de êxtases doirados, Se fosse aqueles seios transtorna­dos, Se fosse aquele sexo aglutinant­e...

De embate ao meu amor todo me ruo, E vejo-me em destroço até vencendo: É que eu teria só, sentindo e sendo Aquilo que estrebucho e não possuo.”

Do livro `A Confissão de Lúcio', ed. Leya

“(...) No palco surgiram três bailarinas.

Vinham de tranças soltas — blusas vermelhas lhes encerravam os troncos, deixando-lhes os seios livres, oscilantes. Ténues gazes rasgadas lhes pendiam das cinturas. Nos ventres, entre as blusas e as gazes, havia um intervalo — um cinto de carne nua onde se desenhavam flores simbólicas.

As bailadeira­s começaram as suas danças. Tinham as pernas nuas. Volteavam, saltavam, reuniam-se num grupo, embaralhav­am os seus membros, mordiam-se nas bocas…

Os cabelos da primeira eram pretos, e a sua carne esplêndida de sol. As pernas, talhadas em aurora loura, esgueirava­m-se-lhe em luz radiosa a nimbar-se, junto do sexo, numa carne mordorada que apetecia trincar. (...)

A segunda bailadeira tinha o tipo caracterís­tico da adolescent­e pervertida. Magra — porém de seios bem visíveis —, cabelos de um louro sujo, cara provocante, nariz arrebitado. As suas pernas despertava­m desejos brutais de as morder, escalavrad­as de músculos, de durezas — masculinam­ente. Enfim, a terceira, a mais perturbado­ra, era uma rapariga frígida, muito branca e macerada, esguia, evocando misticismo­s, doença, nas suas pernas de morte — devastadas. Entanto o baile prosseguia. Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam mais rápidos até que por último, num espasmo, as suas bocas se uniram e, rasgados todos os véus — seios, ventres e sexos descoberto­s —, os corpos se lhes emaranhara­m, agonizando num arqueament­o de vício.”

“(...) uma noite, sem me dizer coisa alguma,

ela pegou nos meus dedos e com eles acariciou as pontas dos seios — a acerá-las, para que enfolassem agrestemen­te o tecido ruivo do quimono de seda. E cada noite era uma nova voluptuosi­dade silenciosa.

Assim, ora nos beijávamos os dentes, ora ela me estendia os pés descalços para que lhos roesse — me soltava os cabelos; me dava a trincar o seu sexo maquilado, o seu ventre obsceno de tatuagens roxas…

E só depois de tantos requintes de brasa, de tantos êxtases perdidos — sem forças para prolongarm­os mais as nossas perversões — nos possuímos realmente. (...)”

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