O PECADO DA SAUDADE
Amiúde ao longo do dia, ma ri azinha cumpre o ritual da saudade. Telefona aos pais velhotes e adoentados, que se aguentam na aldeia transmontana, agora fustigados por uma saraivada de conselhos da filha, do médico, da autarquia, da GNR e do Governo. Nas últimas semanas, vigiados por uma vizinha, estão até proibidos de ir às compras à mercearia. Este ano, nem apanharam as castanhas, deixaram estragar azeitonas nas oliveiras e desistiram do habitual fumeiro. Tudo por obra e graça da danada da Covid-19! Os velhos andam tristes, nervosos. Dá-lhes para embirrarem um com o outro. No seu 3º andar dos arredores de Lisboa, nunca como agora Mariazinha matutou tanto nos pormenores do Natal e da Consoada. Consegue sorrir ao pensar que nem Deus nem Cristo previram a tempo as contingências deste Natal de 2020. Mas cai-lhe uma lágrima ao prever que a família, confinada em Lisboa, não há-de gozar da excitação da ida à terra. Sozinhos em casa, os pais já sabem que os dois filhos em França não podem vir. Resta-lhes suspirar pela chegada da filha, do genro e dos netos de Lisboa. Imaginosa, a mãe apela ao pecado da gula .“Vou fazer umas filhós de abóbora e até te vais lamber toda com
umas migas doces !” Ma ri azinha resiste .“Vamos ver mãe! vamos ver! não nos devem deixarsairdaqui.”
Não há memória viva de tamanhas contingências físicas e emocionais por alturas do Natal. Crentes e agnósticos sempre utilizaram a tradição natalícia cristã como um bálsamo de relaxamento natural. Chamam-lhe “recarregar baterias”. Muitos em contexto de psicoterapia de grupo familiar, à volta da lareira ou da salamandra, e os crentes tantas vezes como expiação dos pecados do ano inteiro. Concedem-se presentes à família e esmolas aos desafortunados, perdoam-se ofensas, às vezes até se esquecem dívidas. Talvez por isso, nunca tantos especialistas da política e da saúde se debruçaram sobre o tema “Natal em tempos de pandemia”. Mariazinha dá voltas à imaginação. Como juntar a família na Consoada, cada um em sua casa? Arrisca uma saída airosa: todos a falarem e a verem-se através do Whatsapp. A vizinha da aldeia já começou os treinos, explicando aos velhos como é que a coisa funciona. Agarrada ao telemóvel, a mãe suspira, desconfiada. Umaco is aéf alar, outraéapont ar o telemóvel e filmar o marido. Chateado e ofendido, o velho não se contém e põe em dia todo o seu repertório de insultos à moda antiga .“Põe-tema sé já a caminho da aldeia, rapariga!”, grita para Mariazinha. “Nãome venham comes taco is adouótsup, ou lá o que é!e não me digas que agora até asau da deé pecado e paga imposto !”
Não me venham com esta coisa do uótsup, ou lá o que é!