Correio da Manha - Domingo

O PECADO DA SAUDADE

- VICTOR BANDARRA JORNALISTA ANTIGA ORTOGRAFIA

Amiúde ao longo do dia, ma ri azinha cumpre o ritual da saudade. Telefona aos pais velhotes e adoentados, que se aguentam na aldeia transmonta­na, agora fustigados por uma saraivada de conselhos da filha, do médico, da autarquia, da GNR e do Governo. Nas últimas semanas, vigiados por uma vizinha, estão até proibidos de ir às compras à mercearia. Este ano, nem apanharam as castanhas, deixaram estragar azeitonas nas oliveiras e desistiram do habitual fumeiro. Tudo por obra e graça da danada da Covid-19! Os velhos andam tristes, nervosos. Dá-lhes para embirrarem um com o outro. No seu 3º andar dos arredores de Lisboa, nunca como agora Mariazinha matutou tanto nos pormenores do Natal e da Consoada. Consegue sorrir ao pensar que nem Deus nem Cristo previram a tempo as contingênc­ias deste Natal de 2020. Mas cai-lhe uma lágrima ao prever que a família, confinada em Lisboa, não há-de gozar da excitação da ida à terra. Sozinhos em casa, os pais já sabem que os dois filhos em França não podem vir. Resta-lhes suspirar pela chegada da filha, do genro e dos netos de Lisboa. Imaginosa, a mãe apela ao pecado da gula .“Vou fazer umas filhós de abóbora e até te vais lamber toda com

umas migas doces !” Ma ri azinha resiste .“Vamos ver mãe! vamos ver! não nos devem deixarsair­daqui.”

Não há memória viva de tamanhas contingênc­ias físicas e emocionais por alturas do Natal. Crentes e agnósticos sempre utilizaram a tradição natalícia cristã como um bálsamo de relaxament­o natural. Chamam-lhe “recarregar baterias”. Muitos em contexto de psicoterap­ia de grupo familiar, à volta da lareira ou da salamandra, e os crentes tantas vezes como expiação dos pecados do ano inteiro. Concedem-se presentes à família e esmolas aos desafortun­ados, perdoam-se ofensas, às vezes até se esquecem dívidas. Talvez por isso, nunca tantos especialis­tas da política e da saúde se debruçaram sobre o tema “Natal em tempos de pandemia”. Mariazinha dá voltas à imaginação. Como juntar a família na Consoada, cada um em sua casa? Arrisca uma saída airosa: todos a falarem e a verem-se através do Whatsapp. A vizinha da aldeia já começou os treinos, explicando aos velhos como é que a coisa funciona. Agarrada ao telemóvel, a mãe suspira, desconfiad­a. Umaco is aéf alar, outraéapon­t ar o telemóvel e filmar o marido. Chateado e ofendido, o velho não se contém e põe em dia todo o seu repertório de insultos à moda antiga .“Põe-tema sé já a caminho da aldeia, rapariga!”, grita para Mariazinha. “Nãome venham comes taco is adouótsup, ou lá o que é!e não me digas que agora até asau da deé pecado e paga imposto !”

Não me venham com esta coisa do uótsup, ou lá o que é!

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