Correio da Manha - Domingo

“TRAGÉDIA EM COLUNA MATOU SOLDADOS QUE NEM ARMAS LEVAVAM”

Emboscada em trajeto considerad­o seguro surpreende­u uma coluna composta por escriturár­ios e cozinheiro­s

- MANUELA GUERREIRO RECOLHA DO DEPOIMENTO

Estava achegar a luanda, no dia4 de outubro de 1971, quando ouvi o meu nome no altifalant­e, ainda a bordodopaq­uete`veracruz':“soldado016­175temfami­liaresàesp­era.” Senti, pela primeira vez, que o nome família fazia todo o sentido. Era a minha prima Emília e, inesperada­mente, o Zé Manel Sousa e o Vasquinho (amigos da santa terrinha). Senti-me seguro. E lá segui para o Grafanil (quartel para o qual todos seguiam quando chegavam a Angola). Uma vez lá, ouvi falar de dispensas compradas, o que muito me agradou. E com alguns trocados que tinha comprei logo algumas para depois vender aos colegas. Aqui começou o meu primeiro negócio. Sim, porque depois veio a confeção e venda de pulseiras de missangas.

Fui dispensado e logo, com os dois colegas que me esperavam no porto de Luanda, seguimos para a cervejaria Portugália, para o batismo e iniciação à Cuca [cerveja feita em Angola]. Confesso: soube muito bem.

Passados alguns dias, o batalhão seguiu para a Funda, para preparação da Instrução de Adaptação Operaciona­l (IAO). Seguimos em direção a leste, como se fôssemos mercadoria, em camiões de caixa aberta. Como diziam, ironicamen­te, os que já conheciam, eram tão só 1500 km até ao Luso (hoje Luena). Aí, fomos divididos por setores. A minha companhia ficou sediada no Dala. O pelotão de reconhecim­ento e informação, do qual eu fazia parte, e o de sapadores tinham como missão conduzir os grupos de combate das outras três companhias aos locais de ação. Fizemos este percurso vezes sem conta, em que éramos muitos à ida, cerca de 100 e muito poucos à vinda, uns 15. Com o decorrer do tempo fomos ganhando confiança e relaxando, pois nunca nada de relevante acontecia nestes percursos. Mas foi sol de pouca dura.

Emboscada fatal

Havia um grupo, os Dragões, cuja missão era escoltar os civis que se deslocavam entre Dala e Luso. Demorava cerca de duas horas (mais ou menos 100 km) para cada lado. Por ordem superior, esse trajeto passou a ser feito pela minha companhia. Após se fazer o caminho tantas vezes em segurança, começou toda a gente a querer ‘passear’ nessas viagens. Assim, iam desde escriturár­ios a mecânicos, padeiros e cozinheiro­s, cujas armas se reduziam a canetas, ferramenta­s ou panelas, pois alguns nem G3 levavam. E assim foi até ao dia 1 de maio de 1972. Nesse dia fatídico houve uma emboscada, na viagem de regresso para o Dala, já no período da noite. Um Unimog com oito ocupantes, um Volkswagen com o primeiro sargento e família, outro Unimog com quatro ocupantes e um camião Mercedes com bens alimentare­s e várias pessoas formavam a coluna. O Araújo e eu seguíamos na viatura da frente e pedimos ao furriel Miradouro para passarmos para a de trás. Por Deus, ou por sorte, ficámos vivos.

O Unimog da frente foi atingido por uma bazuca e muito tiroteio, morreram três colegas e houve cinco feridos. O mesmo aconteceu à Mercedes que não parou, tendo entrado na linha de fogo e assim hou

A debandada do inimigo ficou a dever-se à minha reação e à do soldado Araújo, que descarregá­mos as armas aleatoriam­ente

Viajávamos em camiões como se fôssemos mercadoria

ve mais quatro mortos e um ferido. Sem ser atingido, o Volkswagen do primeiro-sargento Pinto conseguiu passar e foi pedir reforços ao pelotão que guardava a ponte do rio Cassai. Na última viatura, onde eu me encontrava, não houve vítimas, excetuando alguns ferimentos ligeiros. A debandada do inimigo ficou a dever-se à minha reação e à do soldado Araújo, que descarregá­mos as armas aleatoriam­ente, impedindo que a tragédia fosse total. Entretanto chegaram os reforços, já depois de termos assistido os colegas feridos. Eu e os demais intervenie­ntes fomos reconhecid­os com um louvor.

Passei à disponibil­idade 35 meses e 17 dias depois de estar nesta guerra ingrata, onde – como em todas as guerras em que nos deparamos com inimigos, sem o sermos - morreram tantas pessoas sem saberem porquê.

 ??  ?? 1 Em cima de um ‘rebenta minas’ 2 Equi pa de futebol do pelotão de reconhecim­ento e informação, antes de um jogo com a companhia de sapadores, num torneio amador 3 Certi ficado que atesta o serviço militar em Angola
4 Os grupos de combate eram deixados em Mucuamuilo
5 Fr ancisco Morais numa aldeia a amassar mandioca 6 Aquarteame­nto ficava em Dala
LUSO
DALA
1 Em cima de um ‘rebenta minas’ 2 Equi pa de futebol do pelotão de reconhecim­ento e informação, antes de um jogo com a companhia de sapadores, num torneio amador 3 Certi ficado que atesta o serviço militar em Angola 4 Os grupos de combate eram deixados em Mucuamuilo 5 Fr ancisco Morais numa aldeia a amassar mandioca 6 Aquarteame­nto ficava em Dala LUSO DALA

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