Correio da Manha - Domingo

TUDO DARIA UM ROMANCE

- SOUSA HOMEM ANTIGO ADVOGADO ANTIGA ORTOGRAFIA

Diz-se que, algures no princípio do século passado, o Tio Alberto anunciou à família que ia partir numa viagem pela Europa a fim de festejar a relativa solidez da sua primeira conta bancária.

A proclamaçã­o foi recebida com cepticismo e creio que com algum alívio. O seu irmão, o velho Doutor Homem, meu pai, ainda não tinha casado mas, como uma personagem dos livros de Somerset Maugham (que, naturalmen­te, ainda não tinha lido), ia à ópera, visitara Londres, vestia com elegância e já cortejava Dona Ester, minha mãe, a filha única de um médico que herdara o lugar de Júlio Dinis na Escola Médico-Cirúrgica do Porto; o outro irmão, o tio Alfredo, o único dos três que não seguiu a desinteres­sante carreira de advogado, partiria em breve para o Brasil, onde se dedicaria aos negócios nos sertões do Pernambuco, de onde apenas regressari­a depois da morte do dr. Salazar. Restavam ele – e o mapa de uma

Europa que reerguia ainda as ruínas da guerra, e que, tragicamen­te, enquanto esquecia a gripe espanhola, se prepararia para a seguinte. Era preciso aproveitar. O Tio Alberto gostava de jazz, passara pelo fox-trot, acumulava livros que não lia, tinha clientes discretos em Braga e em Viana, descobrira a pesca nas penedias do Cávado e do Âncora, mas desejava atravessar a fronteira de Valença para Tuy e, daí, atravessar a Espanha – que daí a uns anos entraria em guerra – e tomar a Europa. Na época, as estradas espanholas eram tão más que as suas linhas férreas e os seus péssimos comboios podiam ser considerad­os “utilizávei­s”. Por isso, foi de barco que o Tio Alberto partiu para Inglaterra, depois para França, e daí para a Suíça e para Itália, onde foi feliz e pensou ter encontrado a cidade dos seus sonhos, que não era Roma mas a outonal Nápoles, porque era politicame­nte um romântico e acreditava que ainda vivia no tempo do reino das Duas Sicílias, que desaparece­ra há 60 anos. Regressou igualmente de barco na véspera do Natal (no paquete ‘Admiral’, que vinha da costa oriental de África), cinco meses depois. O meu avô paterno, administra­dor de quintas no Douro, foi esperá-lo a Lisboa e descarrego­u-o em Campanhã mas, segundo a Tia Benedita – que já era a chama miguelista dos Homem –, o Tio Alberto nunca teria regressado dessa viagem. O coração ficara para sempre do outro lado das nossas fronteiras.

Na sua casa de São Pedro de Arcos descobrimo­s, já depois da sua morte, a fotografia de Svetlana Davydovna, uma jovem de famílias nobres de Astrakhan – onde o Volga russo se apressava na direcção do Cáspio. Foi o amor da sua vida, que ele conheceu na sua viagem por Itália, recortada diante do colosso do Vesúvio. A minha sobrinha Maria Luísa, a eleitora esquerdist­a da família, acha que o nosso mundo teve alguma graça e daria um romance.

O Tio Alberto anunciou que ia partir numa viagem pela Europa

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal