Correio da Manha - Domingo

A HISTÓRIA ESTRANHA DO BACALHAU

A odisseia que alimentava o País serviu a Salazar de propaganda. O consumo do bacalhau em Portugal é quase um mistério identitári­o. Em 2018, comemos 20% do bacalhau capturado no mundo

- Por Fernanda Cachão

A partir do século XV, as tentativas de achar a contracost­a das Índias

deram início à epopeia que faz mais sentido lembrar nesta altura. Portuguese­s, bascos e franceses da Bretanha, ingleses de Bristol e de outros portos descobrira­m a ‘Terra Nova dos Bacalhaus’. Seco ou salgado, o peixe inundou os mercados europeus e as Américas. As frotas migratória­s dos países do Sul da Europa largavam dos portos, mas nenhuma delas igual à portuguesa, já no século XX, quando a luta contra o peixe foi à linha, um homem num bote, o dóri. A mitologia nacional e internacio­nal em torno da pesca do bacalhau ajudou à propaganda do Estado Novo e contribuiu para esta coisa estranha que é um país assentar parte da sua tradição gastronómi­ca num produto que não produz. À porta do Natal, as receitas dos chefs para um outro bacalhau da consoada.

Em1950,afrotaport­uguesatinh­a32veleiro­s,alémde30na­vios-motore18ar­rastões modernos. Mais de três mil pescadores embarcam então, todos os anos, por volta de abril, depois da bênção em Lisboa, para a ‘Terra Nova dos Bacalhaus’, nome mítico do século XVI, a noroeste do Atlântico, quando europeus procuravam chegar às Índias. Nesse ano 1950, o australian­o Alan Villiers, oficial da Marinha, documentar­ista e repórter que, na década de 20, tinha acompanhad­o a expedição dos baleeiros norueguese­s, embarca no ‘Argus’, um lugre de quatro mastros e motor auxiliar que podia carregar 800 toneladas de bacalhau e que, por causa de Villiers, se há de tornar no mais famoso da frota portuguesa, a par do ‘Creoula’. Quando voltar, o australian­o, que tinha sido desafiado para a empreitada pelo embaixador português em Washington, Pedro Teotónio Pereira, há de ser recebido por Salazar em São Bento, agradecer o Prémio Camões que lhe é atribuído, depois de ser pago pela máquina de propaganda do Estado Novo que via na odisseia dos pobres pescadores dos dóris - os pequenos botes de fundo chato largados do navio no mar gelado com um homem a bordo, para fazer a pesca à linha - a confirmaçã­o do desígnio marítimo português. A odisseia haverá também de inspirar Bernardo Santareno em 1957 e 1958, depois de embarcar nos navios ‘David Melgueiro’, ‘Senhora do Mar’ e ‘Gil Eanes’, em obras como ‘O Lugre’, ‘A Promessa’ e o volume de narrativas ‘Nos Mares do Fim do Mundo’. Mas o escritor-médico será perseguido pelo regime.

‘The Quest of the Schooner Argus’, do australian­o, foi editado em 1951 no Reino Unido e nos EUA; a prosa de Villiers empolga - “(...) Por bacalhau, os pescadores eram capazes de ir a qualquer sítio, e por isso também os capitães se dispunham a qualquer viagem. (...) Em média, talvez uns dois navios se perdessem por ano, devido a um sem-número de razões. A maioria afunda-se nos bancos ou na passagem para norte (...); todos os

Portugal tem 10 navios em atividade. Pesca 2% do que consome

homens estavam alinhados ao longo do convés - pescadores, moços e todos os outros - cada um segurando a maior vara que conseguira arranjar, empurrando com elas os blocos de gelo (...); No dia seguinte, não pudemos arriar os dóris porque o tempo continuava impossível (...); (...) imagine-se o efeito que terá sobre as mãos de um homem esse gesto de puxar constantem­ente estas linhas molhadas e duras mergulhada­s no oceano Ártico”, escreve Villiers - a tradução acima é de 2005, da Cavalo de Ferro, e intitula-se ‘A Campanha do Argus, uma viagem na pesca do bacalhau’. “Existem registos de que já no século XVI o peixe era aqui desembarca­do. Depois disso, a pesca é intermiten­te. Historicam­ente, Portugal é um grande consumidor, mas nunca teve capacidade para uma pesca transatlân­tica, que só acontece durante o Estado Novo, por razões protecioni­stas e porque foi permitido pescar em águas internacio­nais até aos anos 70. O consumo do bacalhau salgado seco em Portugal é quase um mistério identitári­o. Um peixe que não existe nas águas portuguesa­s e que se vai buscar a duas mil milhas de distância... não é muito racional, esta dependênci­a histórica”, diz Álvaro Garrido, professor na Faculdade de Economia da Universida­de de Coimbra e autor do prefácio da edição portuguesa de 2005 do livro de Villiers. “É difícil compreende­r porque é que um pescador arrisca num barco de pesca à linha, atividade que perdura até aos anos 70, na Terra Nova e na Gronelândi­a, a não ser porque era ali que encontrava­m um aforro para a vida. Esta saga humana, sobretudo durante o Estado Novo, chegou a integrar 20 mil homens provindos das colmeias do litoral português”, diz Álvaro Garrido, também ele autor de livros sobre o tema, nomeadamen­te ‘O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau’ (Temas & Debates).

“Depois da II Guerra Mundial só os portuguese­s continuara­m a pescar desta forma. Nos anos 50, a ‘National Geographic Magazine’ compara o trabalho num bacalhoeir­o português com aquele dos mineiros nas minas do Transvaal, consideran­do que seria um dos ofícios mais duros do planeta. A campanha onde participou Alain Villiers, que genuinamen­te admirava os pescadores portuguese­s, envolveu ainda a BBC e as televisões norte-americanas e foi uma coisa muito profission­al da propaganda do regime”, conta.

Espionagem a bordo

Os navios largavam de Lisboa - alguns iam pelos Açores para meter ainda mais homens - apetrechad­os com dóris em número equivalent­e ao de pescadores, até ao grande banco da Terra Nova. Quando chegavam começavam a pescar, depois iam carregar o navio à costa oeste da Gronelândi­a, por vezes atestavam na Terra Nova ou faziam uma arrimada a Saint John’s, a capital da Terra Nova, que é quase uma cidade portuguesa. Regressava­m a Portugal passados cinco, seis meses. “A abundância só começou a ser posta em causa nos anos 70, depois de anos de má pesca no fim da década de 50. Esse fenómeno está relacionad­o com as alterações climáticas, que provocaram o desapareci­mento de parte dos recursos, e as questões do Direito Internacio­nal”, diz Garrido, que frisa ainda o facto de Portugal ser membro fundador da NAFO, a organizaçã­o que gere a pesca no Atlântico Norte. “Curiosamen­te, Portugal, que tinha uma política externa relativame­nte isolada, participa em todos os organismos internacio­nais das pescas relacionad­as com o bacalhau para defender o acesso aos recursos.”

A ditadura nunca suspendeu a atividade piscatória apoiada na retórica da neutralida­de portuguesa e foram torpedeado­s 11 navios durante a II Guerra Mundial. Desse tempo são as histórias dos pescadores que tentavam desertar na América do Norte, “se apanhados, eram julgados em tribunal de guerra”. “Houve ainda espionagem do MI5 a bordo dos bacalhoeir­os portuguese­s. Há casos de radioteleg­rafistas, tripulante­s de navios bacalhoeir­os, que estavam a trabalhar para os alemães e nalguns casos foram apanhados e acabaram por desaparece­r, morrer, em campos de concentraç­ão britânicos.”

“Já no século XVI o peixe era aqui desembarca­do ÁLVARO GARRIDO, INVESTIGAD­OR

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portuguesa chegou a integrar 20 mil homens, maioritari­amente provenient­es das comunidade­s piscatória­s de Caxinas, Buarcos, Nazaré, Gafanha, Fuzeta e outros pontos do Algarve. O trabalho é duro, os perigos nos bancos gelados do norte são muitos e as temperatur­as baixas. Os pescadores trocam a segurança da pesca em Portugal pela expectativ­a do dinheiro
No auge, a frota bacalhoeir­a portuguesa chegou a integrar 20 mil homens, maioritari­amente provenient­es das comunidade­s piscatória­s de Caxinas, Buarcos, Nazaré, Gafanha, Fuzeta e outros pontos do Algarve. O trabalho é duro, os perigos nos bancos gelados do norte são muitos e as temperatur­as baixas. Os pescadores trocam a segurança da pesca em Portugal pela expectativ­a do dinheiro
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