Correio da Manha - Domingo

O MACACO E O ORGANISTA

‘Mank’ é uma das mais impression­antes meditações sobre as relações de poder que o cinema americano produziu

- POR JOÃO PEREIRA COUTINHO ANTIGA ORTOGRAFIA TÍTULO ‘MANK’ AUTOR DAVID FINCHER EXIBIÇÃO NETFLIX

Mankiewicz confrontou os magnatas dos grandes estúdios

Será que o leitor conhece a parábola do macaco e do organista? Reza assim: todos os dias, o macaco é vestido e calçado para actuar nas ruas; e até pensa que o organista que o segue é um mero adereço da sua lustrosa pessoa. O que o macaco não percebe é que o adereço é ele. Se o organista quiser, acaba-se o espectácul­o e o macaco regressa a uma vida anónima na jaula.

Eis a fábula que é contada no filme ‘Mank’ e que resume o espírito da obra. Herman Mankiewicz, irmão do famoso Joseph, era um prodígio da escrita na Hollywood dos anos 30 e 40. E, como normalment­e acontece a temperamen­tos artísticos, incapaz de ceder ou de compromete­r a sua “integridad­e” com a ética corrupta dos grandes estúdios e dos seus magnatas.

Esse choque moral será inevitável quando, do outro lado das trincheira­s, estão nomes como Louis B. Mayer e, sobretudo, William Randolph Hearst. É este último, aliás, quem lhe conta a história do macaco e do organista na sequência mais notável do filme: o momento em que o macaco Mank confronta o organista Hearst.

Mas será que a fábula está correcta? Em teoria, sem dúvida: um macaco é um macaco. Mas é preciso lembrar que é o macaco que o público aplaude, não o organista. E, no caso de Mankiewicz, o legado do macaco tem nome: ‘Citizen Kane’. O filme foi escrito por ele, mesmo que Orson Welles, o realizador e o protagonis­ta, tenha juntado o seu nome à autoria do argumento.

É o filme que perdura para lá de qualquer organista. Melhor ainda: o filme perdura enquanto retrato implacável que o macaco fez do organista.

‘Mank’ é uma das mais impression­antes meditações sobre as relações de poder que o cinema americano produziu – ou, se quisermos, é uma reactualiz­ação da dialéctica do senhor e do escravo, que nos mostra, tal como Hegel afirmara, que a liberdade última pertence ao escravo. Como é evidente, uma empreitada destas só seria possível quando existe o talento de David Fincher, o argumento magistral de Jack Fincher (pai do realizador) – e um Gary Oldman, como Mankiewicz, que tem aqui o papel de uma vida.

“Garyoldman,co mo mankiewicz, tem neste filme realizado por david Fin cher o papel deu ma vida”

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