Correio da Manha - Domingo

O INVERNO CHEGOU A MOLEDO

- SOUSA HOMEM ANTIGO ADVOGADO

A disposição de Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, tem melhorado muito nos últimos dias. De vez em quando dou com ela diante da janela da cozinha a observar a copa “dos pinheiros do caminho” com a mesma melancolia de Augusto Gil na ‘Balada da Neve’.

Levada pelos pais para o 40 ainda criança, Dona Elaine regressou quarenta anos depois, viúva e disposta a passar o resto da vida na velha casa de família, que entretanto tinha sido ampliada e melhorada. O seu sotaque misturava a graciosida­de carioca com o vocabulári­o de alguém que nascera em Reboreda (uma aldeia na colina sobre o rio Minho, de onde se vê Vila Nova de Cerveira), e não esquecera as suas raízes minhotas. Com ela transporta­va o calendário do passado – mas sobrava muito daquele que, felizmente, chegou até hoje. Em vez de se dedicar ao Outono da sua vida, Dona Elaine veio tomar conta deste eremitério de Moledo para onde eu me tinha retirado há alguns anos sem ter conhecido nem a disciplina do matrimónio nem a solidão dos desventura­dos – nem, para sermos justos, a falta de apetite. Portanto, tirando quatro ou cinco prerrogati­vas negociadas com diplomacia e cautela, Dona Elaine assumiu a direcção das coisas com poderes quase absolutos, como convém a alguém com as suas funções. As minhas irmãs acham que cheguei a esta idade protegido pela preguiça e pelo celibato; doravante, envelheci como me competia, mas protegido pela austera determinaç­ão de Dona Elaine, que tanto dá conselhos de culinária às visitas, como impõe um módico de sensatez nesta família, obrigando-nos a descer à terra e a tomar conhecimen­to da existência do resto do mundo. Seja como for, a sua disposição tem melhorado, acredito que devido às condições meteorológ­icas que têm providenci­ado temperatur­as que anunciam o Inverno. Observando a copa dos pinheiros, como referi, Dona Elaine dá as boas vindas aos temporais, vê como a chuva limpa as poeiras dos mióporos encostados aos muros, vê aproximar-se o Natal, aumenta a lista de afazeres para preparar as ementas da época. Ao contrário de Maria Luísa – que acha que fomos feitos para viver na Costa Rica e para espremer a pasta de dentes pelo topo em vez de o fazer pela base – nunca ouvi a Dona Elaine uma queixa sobre os rigores da meteorolog­ia ou as coroas de nuvens que rodeiam o monte de Santa Tecla. No Verão, ela quer Verão antes de um Outono suave. Nesta altura do ano acende a lareira com orgulho e uma certa nostalgia que a devolve à sua terra natal, nas colinas de Cerveira, e me lembra – a mim, escondido a aguardar o final do ano – aquele inevitável sentimento da minha inutilidad­e.

ANTIGA ORTOGRAFIA

“Nunca ouvi a Dona Elaine uma queixa sobre os rigores da meteorolog­ia

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal