A geografia da resistência
Se olharmos para o mapa de Portugal, verificamos que existe uma verdadeira geografia da resistência,
que confirma a importância política que várias cidades e vilas tiveram na organização de actos culturais contra a ditadura.
Essa geografia confirma o peso histórico e político de terras que acolheram formas de organização sindical ou política merecedoras de destaque. Toda a Margem Sul do Tejo, com destaque para Almada, Cova da Piedade, Barreiro, Montijo e Seixal, entre outras, com base na vitalidade das suas colectividades de cultura e recreio, foram o palco vivo de sessões de canto de resistência. Mas havia outras a norte do Tejo, com relevo para vilas como a Marinha Grande, que, devido a uma longa tradição de lutas operárias, foram espaços de acolhimento para os cantores da resistência, apesar das proibições.
O Clube Operário Marinhense recebeu, em 1972, uma sessão de canto político com a participação de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Vitorino Salomé e a minha. A sala estava cercada por forças repressivas, designadamente a GNR
Não podíamos cantar, mas ninguém nos proibia de dizermos os textos
e a PSP. Tinha ficado claro que não se podiam cantar as canções previstas por nós.
Recordo-me da eficácia de um acto de resistência que se traduziu no seguinte: não podíamos cantar as canções, mas ninguém nos proibia de dizermos os seus textos. Apesar de a sala estar repleta de polícias e de pides, foi o que aconteceu durante duas horas e meia, para perplexidade do público e irritação dos repressores. Um deles chegou a dizer-me que, se não tivéssemos bom senso, acabaríamos todos presos.
Falou-se muito mais do que se cantou, mas resistiu-se de uma maneira que se tornou invulgar e até histórica. Essa noite, no Clube Operário da Marinha Grande, foi um fugaz momento de glória para quem só tinha do seu lado dois factores poderosos: a coragem e a força que a razão dá sempre a quem nunca deixa de a ter. Ainda hoje falamos desse dia com um orgulho sereno e inevitavelmente nostálgico.