A liberdade da cruzinha
Josefa aceitou durante décadas a dramática norma popular: “Entre marido e mulher não metas a colher!”
Ao longo de muitos anos, viu-se a braços com um marido possessivo, ciumento e controlador da sua vida privada, que amiúde exercia a autoridade de “chefe de família” com fortes pares de estalos. Josefa, resignada, tudo aguentou. A custo, justificava-o perante as vizinhas. “É o meu marido! Bate naquilo que é seu!” O homem, funcionário do Estado, sempre votou antes do 25 de Abril, por medo, obrigação e industriado pelos superiores. Ela, por ser analfabeta, não tinha direito de voto. As mulheres só tiveram esse direito nas primeiras eleições pós-25 de Abril. Havia excepções. A hipocrisia machista do Estado Novo apenas garantia o voto às mulheres com o curso do Liceu (hoje escolaridade obrigatória) ou se fossem “chefes de família” (viúvas ou com marido ausente). Veio o 25 de Abril. Cuidadoso, quiçá por vergonha, o homem até deixou Josefa votar nas primeiras
“Para estas eleições, já mandou a mulher votar no partido X”
eleições livres. Não sem antes indicar, peremptório e ameaçador, em que partido é que Josefa deveria pôr a cruzinha.
Hoje velhinhos, os dois aguentam-se como podem, em nome de filhos e netos. Com o tempo, o marido amaciou comportamentos. Segue a política pela TV, comenta e repara em tudo. “Olhem-me só aqueles emplastros atrás dos políticos!” Ao longo dos anos, até lhe deu para mudar o sentido de voto, por utilidade e lógica muito própria. Para estas eleições, como sempre, já mandou Josefa votar no partido X. Mal sabe ele que Josefa exerce uma liberdade única, a sua pequena vingança. Em todas as eleições, se o marido a mandava votar no partido X, ela escolhia sempre o partido Y. E nestas eleições, Josefa vai outra vez contrariar o marido. É o seu voto secreto, a sua conquista de Abril.