Uma romancista genial
DEPOIS DA PIOR CAMPANHA ELEITORAL A QUE ASSISTI, DECIDI FECHAR A TV E LER FICÇÃO. ESTE LIVRO FASCINOU-ME PELO SENTIDO DE HUMOR, RIGOR DE OBSERVAÇÃO E CAPACIDADE ICONOCLASTA
Este livro de Muriel Spark não é feito para ser popular: ninguém se quer lembrar do dia em que confrontará a morte, mas a obra acabou por ser aclamada por grandes escritores
TÍTULO `Memento Mori' AUTOR Muriel Spark EDITORA Relógio D'água
Há 50 anos, um grupo de capitães revoltou-se. Muitos foram os motivos, alguns ligadas às suas carreiras. Seja como for, com os cravos chegou a liberdade. De início, votei com alegria. Isto não durou, porque cedo me apercebi que as eleições feitas com base em listas eram prejudiciais à democracia. Agora, depois da pior campanha eleitoral a que assisti, decidi fechar a TV, o que me levou a ler ficção, coisa que há muito não fazia.
Acabo de reler a obra ‘Memento Mori’, de Muriel Spark. Dos livros contemporâneos, em que a morte é o tema central, este livro fascinou-me pelo seu sentido
“Com os cravos chegou a liberdade. De início, votei com alegria”
de humor, rigor de observação e capacidade iconoclasta (o latim ‘Memento Mori’ pode ser traduzido como “Lembre-se que um dia há de morrer”). O enredo centra-se numa série de telefonemas anónimos para idosos em que uma voz, que nunca se identifica, lhes diz “Memento Mori”, após o que desliga. O alvo é um conjunto de membros das classes superiores britânicas cujo centro
“Ter mais de 70 anos é equivalente a estarmos envolvidos numa guerra”
é Dame Lettie Colston, OBE. De início, estes telefonemas apenas assustam, mas, pela sua frequência, acabam por contagiar de paranoia os familiares e os amigos. O romance termina com a morte de quase todos os protagonistas e com a descrição crescente da demência dos que sobrevivem.
Não é um livro feito para ser popular: ninguém se quer lembrar do dia em que confrontará
a morte, mas a obra acabou por ser aclamada por grandes escritores. De todos, prefiro o elogio de V. J. Naipaul: “Há um brilho neste romance que faz lembrar Waugh, na sua narração económica e corrida, na série de surpresas criadas por um poder de invenção contínuo, nos diálogos bem recortados, no tom controlado. O último traço é o mais notável feito de estilo de Miss Spark. Nada é forçado, acima de tudo nunca o humor.”
Dois diálogos
Se me pedissem para escolher algumas passagens, a minha sele
“Até temo que, se esta tendência continuar, jamais morrerei”
ção recairia em dois diálogos. O primeiro tem lugar entre o que Miss Taylor (a empregada doméstica da cunhada de Dame Lettie) diz: “Ter mais de setenta anos é equivalente a estarmos envolvidos numa guerra. Todos os nossos amigos estão em vias de desaparecer ou já desapareceram e nós sobrevivemos num campo de batalha entre mortos e moribundos” (pág. 37). A certa altura, Miss Taylor é colocada num lar. Numa visita, Dame Lettie previne-a que, de futuro, talvez não volte a fazê-lo por causa do horrendo cheiro daquele estabelecimento. Depois de uns comentários sobre os idosos ali residentes, a criada responde-lhe: “Pelo que me diz respeito, ficaria radiante se pudesse morrer em paz. Mas os médicos ficariam escandalizados se me ouvissem dizer isto. Andam tão orgulhosos com os novos remédios e com os novos métodos de tratamento. (…) Por vezes, até temo que, se esta tendência continuar, jamais morrerei” (pág. 172).