Correio da Manha - Domingo

“Nas suas cabeças, as mulheres pareciam livres” BI

JORNALISTA FRANCO-ALEMÃ ESCREVEU SOBRE OBJETOS QUE MARCARAM A VIAGEM FEMININA DESDE A PRÉ-HISTÓRIA ATÉ HOJE. E QUE MOSTRAM A EVOLUÇÃO DE COMO AS MULHERES ERAM VISTAS PELOS OUTROS E POR ELAS PRÓPRIAS E COMO LUTARAM PELA SUA LIBERDADE

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No livro `Uma História das Mulheres em 101 Ob- jetos' (Ed. Planeta) há ob- jetos de prazer feminino, mas também de subjuga- ção feminina. Há artefac- tos da pré-história e obje- tos de culto da moderni- dade. Há histórias íntimas e coletivas, das mais ób- vias às mais curiosas.

Quem é a Annabelle e porquê escrever a história das mulheres?

Sou uma jornalista fran- co-alemã, vivo entre Ro- ma, Paris e Berlim e inte- ressa-me muito a histó- ria feminina. Viajo mui- to e sempre que o faço estou constantem­ente a ten- tar encontrar uma mulher do passado que me revele alguma coisa sobre o lugar onde estou, sobretudo como foi ser mulher ali. Foi assim que cheguei ao livro.

Podemos dizer que este é um livro feminista?

Para mim é muito difícil dizer isso, mas talvez mostrar como tem sido ser mulher em tempos passa- dos seja de facto feminista porque nos dá uma base para pensarmos o futuro. Mas o livro é mais para levantar questões do que para dar respostas, não é necessaria­mente o meu ponto de vista sobre as coisas. Quando falo do fil- me pornográfi­co ‘Gargan- ta Funda’ há quem ache que isso é feminista, por- que a pornografi­a empo- dera as mulheres, e quem ache o seu oposto.

Foi muito difícil resumir a história da Mulher a 101 objetos?

Trabalhei neste projeto um ano e meio e estive sempre a telefonar ao meu editor a tentar convencê-lo a deixar-me chegar aos 120 objetos, mas não consegui [risos].

Qual foi o critério de escolha?

Tentei fazer uma mistura de coisas que são curiosas com coisas que são óbvias. Achei importante tentar

“Há quem ache que o filme pornográfi­co `Garganta Funda' é feminista e empodera as mulheres e quem ache precisamen­te o oposto”

obter um equilíbrio entre objetos como o biquíni, de que não consegui fugir, e coisas mais surpreende­ntes, como o bidé ou a prancheta [inventada em França por volta de 1853], uma placa de madeira em forma de coração sobre dois pequenos rolos e um alfinete, destinada a comunicar com os mortos.

Conseguiu aquilo que pretendia?

A dada altura percebi que havia muitas mulheres sobre as quais eu queria falar.

E recontar a história?

Por exemplo, as pessoas gostam de dizer que a I Guerra Mundial libertou as mulheres porque lhes deu novos empregos, mas a emancipaçã­o das mulhe- res começou quase 60 anos antes. Não é verdade que a guerra tenha obriga- do as mulheres a traba- lhar pela primeira vez: elas sempre trabalhara­m, em todos os momentos da história. Ao falar sobre este período acho extre- mamente importante ver como, de certa forma, de- pois da guerra, as mu- lheres foram mandadas de volta para casa, ainda mais do que antes, en- quanto os homens tenta- vam recuperar a sua virili- dade. E ainda foram, so- bretudo no caso da Ale- manha, responsabi­lizadas pela derrota. Dizia-se que tinham minado a moral dos soldados alemães com os seus lamentos por carta.

Houve objetos que sabia à partida que não queria ter e outros que fazia questão de incluir?

Toda a gente me falava no tampão e para mim não fazia sentido. Por outro lado, soube sempre que queria ter a figura de Bau- bo no livro.

Que história é essa?

Em 1898, um grupo de ar- queólogos alemães encon- trou estatuetas invulgares durante uma escavação no templo de Deméter, na atual Turquia, e que consistiam numa cabeça de grandes dimensões sobre duas pernas estreitas. Onde normalment­e estaria o estômago, havia dois olhos, um nariz, uma boca sorridente e imediatame­nte abaixo uma vulva. Anos mais tarde descobriu-se que esta mulher-vulva está ligada ao mito de Baubo, uma idosa que tentou animar a deusa Deméter que perdera a filha, levantando a saia e mostrando a vulva. Esta história está ligada a umas festas de homenagem a Deméter, de onde os homens eram excluídos, e por isso acreditava­m que as mulheres, em conjunto, repetiam o gesto de Baubo durante três dias.

O que a surpreende­u mais na pesquisa?

Há uma coisa curiosa: perceber que, independen­temente da liberdade na sociedade, dentro das suas cabeças as mulheres pare

“Emancipaçã­o das mulheres começou sessenta anos antes da I Guerra Mundial, ao contrário do que se pensa” “Conta-se que para animar Deméter, que tinha perdido uma filha, a idosa Baubo levantou a saia e mostrou a vulva” “As coisas eram mais flexíveis para as mulheres até ao século XIX, arranjavam sempre forma de contornar os obstáculos”

ciam muito livres. Perceber também que, ao contrário do que pensamos, na Idade Média as mulheres foram muito mais livres do que em alguns períodos posteriore­s. Houve uma fase em que o mundo se abriu para as mulheres e depois se fechou muito violentame­nte. Percebi, por um lado, que as coisas eram mais flexíveis para as mulheres até ao século XIX, como se elas arranjasse­m sempre forma de contornar os obstáculos e, por outro, que a liber- dade das mulheres foi sempre um vaivém.

É uma das razões que tornam o livro importante para o futuro?

Sim. Sobretudo perceber como uma crise ou uma de- cisão política pode alterar os direitos das mulheres.

Falando sobre os objetos, qual é o mais antigo que refere no livro?

O osso do fémur sarado, que existiu cerca de 30 mil anos antes de Cristo e que a an- tropóloga Margaret Mead considera o primeiro ves- tígio da nossa civilizaçã­o. Achados ósseos que pro- vam que uma pessoa sobre- viveu, há muitos milénios, com um osso da coxa parti- do indicam que alguém es- tava lá para lhe prestar cui- dados, o que é o primeiro si- nal de civilizaçã­o.

E o objeto mais impor- tante para a igualdade das mulheres?

A pílula, mesmo que mui- tas mulheres já não a to- mem atualmente.

Porquê o batom?

Para mim significa “vamos abrir a boca e vamos fazer barulho?”, desde que a 6 de maio de 1929 as sufragista­s americanas marcharam gritando “Sufrágio para as mulheres” com os lábios pintados de vermelho. Foi uma rutura com as regras da moral burguesa, porque pintar os lábios de vermelho ainda era considerad­o um sinal de sexo e de pecado aos olhos da maioria dos homens.

E o bidé, porque o incluiu?

Em Portugal vocês usam bidé? Na Alemanha e nos EUA não usam e em França só sabe o que é quem tem mais de 70 anos. Foi o carpinteir­o do rei Luís XIV que, reza a história, tinha medo da água e das doenças que podia trazer, quem inventou a primeira versão do bidé para a higiene íntima. Nos EUA, mais puritanos, houve uma caça ao bidé: o Hotel Ritz, em Nova Iorque, mandou arrancar todos os bidés das casas de banho [por volta de 1900] e conta-se que uma mulher americana parou em frente a um bidé de cerâmica num hotel em Paris e gritou, entusiasma­da: “Oh, que maravilha! É para lavar os bebés?” E a camareira respondeu-lhe: “Não, minha senhora! É para se livrar dos bebés.”

Como justifica a escolha do anel de Kim Kardashian no mesmo livro que fala da mulher nas pinturas rupestres?

Os meus amigos ficaram chocados. Até porque eu não sou uma grande fã de Kim Kardashian. O que eu acho é que ela representa a mulher empoderada deste século. Ela mostra tudo sobre a sua vida e alimenta esta necessidad­e que as pessoas têm de ver, mas ela controla totalmente a imagem, mostrando tudo. Nós não sabemos na realidade quem ela é.

E as pinturas rupestres?

“O batom significa `vamos abrir a boca e fazer barulho?' desde que as sufragista­s puseram batom vermelho”

Durante séculos entendeu-se que os pintores rupestres eram homens e que as mulheres, no máximo, apanhavam frutos silvestres e nozes e ficavam em casa com as crianças. Mas um investigad­or americano concluiu recentemen­te que muitas das pinturas correspond­em a mãos femininas.

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 ?? ?? ANNABELLE HIRSCH nasceu em 1986, estudou História de Arte, Teatro e Filosofia em Munique e Paris. Trabalha como jornalista ‘freelance’ para vários jornais e revistas alemães, escreve contos e é tradutora literária. ‘Uma História das Mulheres em 101 Objetos’ é o seu primeiro livro.
ANNABELLE HIRSCH nasceu em 1986, estudou História de Arte, Teatro e Filosofia em Munique e Paris. Trabalha como jornalista ‘freelance’ para vários jornais e revistas alemães, escreve contos e é tradutora literária. ‘Uma História das Mulheres em 101 Objetos’ é o seu primeiro livro.
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3. MEDALHA DA GREVE ATRIBUÍDA EM 1912 À SUFRAGISTA BRITÂNICA EMMELINE PANKHURST POR DOIS MESES DE GREVE DE FOME
1. 3. MEDALHA DA GREVE ATRIBUÍDA EM 1912 À SUFRAGISTA BRITÂNICA EMMELINE PANKHURST POR DOIS MESES DE GREVE DE FOME
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ESPARTILHO MARCOU A SILHUETA FEMININA DESDE O RENASCIMEN­TO ATÉ AO SÉC. XX 2. BIDÉ FREQUENTEM­ENTE APELIDADO DE CONFESSION­ÁRIO DAS MULHERES
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