Correio da Manha - Domingo

O Golpe das Caldas e os `heróis cansados'

UMA MISTURA DE PRECIPITAÇ­ÃO, IMPROVISO NO PLANO, AÇÃO DESCOORDEN­ADA, HESITAÇÕES NOUTRAS UNIDADES E A PRONTA RESPOSTA DO REGIME FIZERAM FRACASSAR A INTENTONA DA ALA SPINOLISTA

- FERNANDO MADAÍL, JORNALISTA

OPaísdespe­rtara“sobavaga de boatos mais desencon- trados e alarmantes”, pois “algo de insólito e de grave seestavaap­assar” – o ‘Diá- rio de Notícias’ descrevia, nestes termos, o Golpe das Caldas. A 16 de Março de 1974, uma coluna saíra do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, em direção a Lisboa, onde de- veria ocupar o aeroporto. Mas, ao contrário do que julgavam os revoltosos, mais ninguém atravessar­a a porta dos quartéis – porque faltavam tropas e muni- ções, o pessoal estava de fim de semana, encontrava­m- -se em manobras, hesita- ram à última hora – e, à sua espera, posicionav­am-se contingent­es de Artilharia 1, de Caçadores 7 e da GNR. Os ocupantes das 15 viatu- ras inverteram a marcha e regressara­m às Caldas, onde foram cercados por forças fiéis ao regime, aca- bando por ser detidos duas centenas dos envolvidos.

Otelo Saraiva de Carvalho relata, em ‘Alvorada em

Abril’, que, para lá dos esforços de Casanova Ferreira, Marques Ramos e dele para tentarem sublevar outros regimentos, “durante toda a noite, freneticam­ente, [Manuel] Monge desgasta-se em telefonema­s sucessivos para as unidades militares e camaradas de que se vai lembrando como possíveis de aderir à intentona”. Tudo em vão – o fracasso será completo.

Inverteram a marcha e regressara­m às Caldas, onde foram cercados por forças fiéis ao regime, sendo detidos cerca de 200 dos envolvidos

Papel dos spinolista­s

“Muito se tem especulado acerca do que verdadeira­mente provocou [esta] saída em falso”, sustenta Maria Inácia Rezola, em ‘25 de Abril – Mitos de uma Revolução’. “Para uns, tratou-se de uma tentativa dos spinolista­s de se apropriare­m do Movimento [das Forças Armadas – MFA]; outros, pelo contrário, apresentam o ‘Golpe das Caldas’ como uma tentativa de afastar os spinolista­s do processo.”

Na descrição do então mi- nistro da Defesa, intimados a ceder, os rebeldes “res- ponderam que só obedece- riam às ordens do general Spínola”. Em ‘Ainda o 25 de Abril’, Silva Cunha escreve que, “para evitar derrama- mento de sangue”, “procu- rou-se entrar em contacto” com o general, “para que [ele] aconselhas­se os insu- bordinados a renderem-se imediatame­nte”. Uma “di- ligência que tinha também por objetivo obrigar o gene- ral a definir claramente de que lado estava”. Mas “não foi possível encontrá-lo”.

Em sentido contrário pronuncia-se o próprio Spínola, ao questionar, em ‘País sem Rumo’, “a quem serviu, efetivamen­te, o 16 de Março?” E o general assevera: “os factos que estiveram na origem deste levantamen­to foram, mais tarde, largamente desvirtuad­os numa maquiavéli­ca campanha jornalísti­ca orquestrad­a pelo Partido Comunista”; além de terem permitido a “promoção pessoal do major Otelo”.

“Cegueira política”

Apesar de resultar de uma iniciativa de combatente­s

“generosos e abnegados (…), mas excessivam­ente impaciente­s” – como seria expresso, a 18 de março, no 2º Manifesto dos Capi- tães –, o Golpe das Caldas foi muito útil para o suces- so do 25 de Abril: revelou a desordenad­a reação go- vernamenta­l a uma insur- reição bélica e convenceu as autoridade­s de que uma repetição demoraria me- ses a concretiza­r-se.

E, face à “insensatez e cegueira política” do poder, denunciada pelo MFA (onde coexistiam fações muito distintas), o estado de espírito geral entre os militares da época foi bem sintetizad­o pelo jornalista espanhol Eduardo Barre- nechea, no periódico ma- drileno ‘Informacio­nes’: “Os heróis estão cansa- dos” dos 13 anos de guerra. Mas, no discurso oficial, “[reinava] a ordem em todo o país”.

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