O Golpe das Caldas e os `heróis cansados'
UMA MISTURA DE PRECIPITAÇÃO, IMPROVISO NO PLANO, AÇÃO DESCOORDENADA, HESITAÇÕES NOUTRAS UNIDADES E A PRONTA RESPOSTA DO REGIME FIZERAM FRACASSAR A INTENTONA DA ALA SPINOLISTA
OPaísdespertara“sobavaga de boatos mais desencon- trados e alarmantes”, pois “algo de insólito e de grave seestavaapassar” – o ‘Diá- rio de Notícias’ descrevia, nestes termos, o Golpe das Caldas. A 16 de Março de 1974, uma coluna saíra do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, em direção a Lisboa, onde de- veria ocupar o aeroporto. Mas, ao contrário do que julgavam os revoltosos, mais ninguém atravessara a porta dos quartéis – porque faltavam tropas e muni- ções, o pessoal estava de fim de semana, encontravam- -se em manobras, hesita- ram à última hora – e, à sua espera, posicionavam-se contingentes de Artilharia 1, de Caçadores 7 e da GNR. Os ocupantes das 15 viatu- ras inverteram a marcha e regressaram às Caldas, onde foram cercados por forças fiéis ao regime, aca- bando por ser detidos duas centenas dos envolvidos.
Otelo Saraiva de Carvalho relata, em ‘Alvorada em
Abril’, que, para lá dos esforços de Casanova Ferreira, Marques Ramos e dele para tentarem sublevar outros regimentos, “durante toda a noite, freneticamente, [Manuel] Monge desgasta-se em telefonemas sucessivos para as unidades militares e camaradas de que se vai lembrando como possíveis de aderir à intentona”. Tudo em vão – o fracasso será completo.
Inverteram a marcha e regressaram às Caldas, onde foram cercados por forças fiéis ao regime, sendo detidos cerca de 200 dos envolvidos
Papel dos spinolistas
“Muito se tem especulado acerca do que verdadeiramente provocou [esta] saída em falso”, sustenta Maria Inácia Rezola, em ‘25 de Abril – Mitos de uma Revolução’. “Para uns, tratou-se de uma tentativa dos spinolistas de se apropriarem do Movimento [das Forças Armadas – MFA]; outros, pelo contrário, apresentam o ‘Golpe das Caldas’ como uma tentativa de afastar os spinolistas do processo.”
Na descrição do então mi- nistro da Defesa, intimados a ceder, os rebeldes “res- ponderam que só obedece- riam às ordens do general Spínola”. Em ‘Ainda o 25 de Abril’, Silva Cunha escreve que, “para evitar derrama- mento de sangue”, “procu- rou-se entrar em contacto” com o general, “para que [ele] aconselhasse os insu- bordinados a renderem-se imediatamente”. Uma “di- ligência que tinha também por objetivo obrigar o gene- ral a definir claramente de que lado estava”. Mas “não foi possível encontrá-lo”.
Em sentido contrário pronuncia-se o próprio Spínola, ao questionar, em ‘País sem Rumo’, “a quem serviu, efetivamente, o 16 de Março?” E o general assevera: “os factos que estiveram na origem deste levantamento foram, mais tarde, largamente desvirtuados numa maquiavélica campanha jornalística orquestrada pelo Partido Comunista”; além de terem permitido a “promoção pessoal do major Otelo”.
“Cegueira política”
Apesar de resultar de uma iniciativa de combatentes
“generosos e abnegados (…), mas excessivamente impacientes” – como seria expresso, a 18 de março, no 2º Manifesto dos Capi- tães –, o Golpe das Caldas foi muito útil para o suces- so do 25 de Abril: revelou a desordenada reação go- vernamental a uma insur- reição bélica e convenceu as autoridades de que uma repetição demoraria me- ses a concretizar-se.
E, face à “insensatez e cegueira política” do poder, denunciada pelo MFA (onde coexistiam fações muito distintas), o estado de espírito geral entre os militares da época foi bem sintetizado pelo jornalista espanhol Eduardo Barre- nechea, no periódico ma- drileno ‘Informaciones’: “Os heróis estão cansa- dos” dos 13 anos de guerra. Mas, no discurso oficial, “[reinava] a ordem em todo o país”.