Evasões

O RICO PLANALTO ENTRE RIOS

CARRAZEDA DE ANSIÃES As raízes estão à mostra neste interior transmonta­no com vinhas em socalcos, pomares de maçãs, casas de granito, ruas estreitas, o Douro e o Tua. A paisagem não é sempre igual nesta terra que guarda memórias e tem arte contemporâ­nea e

- TEXTO DE SARA DIAS OLIVEIRA FOTOGRAFIA DE LEONEL DE CASTRO/ GI

Neste pedaço de terra encostado ao Douro e ao Tua cultivam-se campos, alimenta-se o gado, mata-se o porco, apanham-se maçãs, faz-se azeite e vinho. Carrazeda vive do que a terra lhe dá, do peixe que sai do rio, e ainda mostra o que lhe corre nas veias. Montes salpicados de granito, um imenso planalto, estradas coladas ao rio, pomares, vinhas, igrejas, museus, adegas. As fronteiras ficaram fechadas no século XI, mas as histórias constroem-se todos os dias. Cristiano Sousa está habituado a contar essas histórias.

Licenciou-se em Turismo e História de Arte em Coimbra, regressou, é guia pelos cantos e recantos de Carrazeda. Conhece-os bem e explica-os em circuitos de um dia, gratuitos, entre março e setembro, dos moinhos de água e vento à anta megalítica da aldeia de Zedes. «Gosto muito da minha terra, das raízes, de viver em Trás-os-montes. É um local sossegado, onde se está bem, onde toda a gente se conhece, onde há apoio comunitári­o», conta.

Este ano, as vindimas começaram mais cedo, o tempo aqueceu, a chuva não caiu. Mónica Prazeres está a pé desde as seis da manhã, conduz um trator de lagartas nas vinhas de Ribalonga e, desenrasca­da, em qualquer canto faz uma manobra. Ao início da noite prepara uma merenda com queijos, enchidos e vinho fino para os amigos que vão à

QUINTA DA CUVETA para uma lagarada. A família tem 40 hectares de vinhas espalhadas por Carrazeda e produz cerca de 165 mil litros de vinho por ano.

Naquela noite, as máquinas que pisam uvas são excecional­mente substituíd­as por homens de pés descalços, calças dobradas até à cintura. Martim, filho de Mónica, não resiste à diversão e salta para o lagar da adega. Mónica não tem dúvida. «O interior transmonta­no é um sítio bonito para se viver.»

Ovinhoéumd os motores económicos e há vários produtores na região: Grambeira, Bulfata, Pala da Lebre, Trovisco, Douro Ansiães, entre outros. E naquelas vinhas com vista para o Douro, na QUINTA DA SENHORA DA RIBEIRA, da casa Symington, nasceu o Dow’s Vintage Porto 2011, que a revista Wine Spectator elegeu como vinho do ano em 2014. Uma garrafa custa agora 300 euros e não é fácil encontrar.

A maçã também é importante para a economia da região. Em Luzelos, não há mãos a medir no pomar da família Saraiva. Mulheres e homens de cestos colados ao corpo sabem de olhos fechados o tamanho que devem ter as maçãs – em caso de dúvida, têm um medidor amarrado ao cesto. Este ano, há mais maçãs, de cinco variedades, nos 12 hectares dos Saraiva. A apanha termina em novembro, nos dois meses seguintes trata-se

da poda. Há sempre trabalho, segundo Ricardo Saraiva, de 25 anos. «Fazemos análises à terra para ver do que precisa, mais azoto, mais potássio. São 25 tratamento­s por ano e é preciso regar todos os dias.»

Lá em baixo, junto ao Douro, mora Otília Rosa, que tem um barco para pescar. Duas horas de manhã a partir das 06h30, mais uma hora ao final do dia. Pelo meio, faz quilómetro­s na sua carrinha com o pescado fresco, sobretudo barbos e lúcios, para vender pelas aldeias. «Se não vou ao rio, fico doente», confessa a pescadora de Carrazeda. Há muito que seguiu as pisadas do pai. «Dos oito filhos, fui a única que ficou com a arte do velho.» Otília está numa fotografia no MUSEU DA

MEMÓRIA RURAL juntamente com outros protagonis­tas de velhos ofícios. A cultura rural, as tradições, o património imaterial da região duriense e transmonta­na mostram-se aqui em imagens, ferramenta­s, textos, livros. O tanoeiro, o canastreir­o, a vida dos pastores, o ciclo da lã, o azeite, o vinho, o pão. A história de Carrazeda é feita dessas pessoas. E no alto do castelo com cinco mil anos, de porta sempre aberta, há histórias mais antigas

e uma imensa vista. Ao redor, o que resta das muralhas de uma povoação e a Igreja de São Salvador de Ansiães que exibe, por cima da porta de entrada, um dos mais belos e completos portais românicos do país. Para acompanhar a cronologia do que se passou na região, apreciar vestígios como machados e cerâmicas, há o CICA – CENTRO INTERPRETA­TIVO

DO CASTELO DE ANSIÃES, erguido das ruínas de uma casa tradiciona­l, a alguns quilómetro­s do monumento nacional. E na vila há esculturas contemporâ­neas de artistas que falam da arte e da vida ao ar livre. Ângelo de Sousa deixou a sua marca em 21 blocos de granito no jardim perto do centro de apoio empresaria­l e Alberto Carneiro criou Os sete livros

da vida em páginas de pedra nos jardins da biblioteca municipal.

Do passado nada se perde, tudo se recupera. A antiga casa dos homens que trabalhava­m na Junta Autónoma de Estradas, a poucos metros das obras da nova barragem do Tua, é agora uma montra dos produtos da região, com garrafeira de madeira, esplanada, sótão, salas de estar. A CASADOS CANTONEIRO­S – FOZTUA WINEHOUSE é um ponto turístico

gastronómi­co com vinhos, azeites, mel, frutos secos, compotas caseiras de maçã, abóbora, cereja, amora silvestre. O vinho é vendido à garrafa ou ao copo, há tábuas de enchidos e queijos e azeite para molhar o pão. Os preços são simpáticos, tabelados pelos produtores e Alice Machado é a sorridente anfitriã que responde aos pedidos e satisfaz curiosidad­es. «É um sítio calmo, come-se bem, as pessoas são afáveis. Carrazeda tem o planalto, as vinhas, zonas viradas para o Tua e para o Douro, geografica­mente é muito diversific­ado», diz. Uma forma de abrir o apetite numa das entradas no concelho.

ALHEIRAS E MIÚDOS

A cozinha transmonta­na é suculenta e Carrazeda junta à mesa o melhor de dois mundos: carnes e peixes do rio. O CALÇA CURTA, pertinho da estação de comboios do Tua, mesmo juntinho ao Douro, é procurado por essa variedade. Tem veado, javali, vitela, e barbos e bogas do rio. O polvo grelhado, especialid­ade da casa, vem de outras paragens, e as enguias entram ali vivas, são fritas e chegam à mesa com molho de escabeche. É um negócio da família Silva. A mãe Zélia segura os comandos na cozinha, os filhos Marco e Cristina servem às mesas, e o pai Frederico ora está no café ora no restaurant­e. «Aqui servimos com sinceridad­e», garante Cristina.

Já a TABERNA DA HELENA serve merendas transmonta­nas e jantares num antigo palheiro recuperado com terraço e belas vistas para o campo, onde o anoitecer ganha um brilho especial. Helena Miranda e Luís Carlos são a alma desta taberna com sabores caseiros e ar moderno. As francelas, tábuas onde se faziam os queijos, são o prato das merendas com presunto, queijos, salpicão. A alheira grelhada, a chouriça picante, o azeite para molhar o pão, os vinhos da região, resumem na barriga a riqueza da região. O borrego

grelhado e os miúdos de cordeiro envolvidos em alho, preparados por Luís Carlos, mostram quão saborosa é esta gastronomi­a que se orgulha das suas raízes e que bem pode terminar a noite com panna cotta com redução de vinho do porto e sumo de maçã.

Noutra casa, o RESTAURANT­E CONVÍVIO, Luís Morgado recebe quem entra de travessa na mão e um sorriso. Da cozinha saem pratos tradiciona­is, o javali estufado com molho que ensopa as batatas cozidas, mão de vaca com grão-de-bico, cordeiro assado na brasa, iscas de fígado de porco com cebolada. Luís aposta na cozinha tradiciona­l, fiel aos sabores transmonta­nos, e também serve arroz de cabidela, posta mirandesa com batata a murro, e rojões.

Docelinda Veiga e Ana Sofia, mãe e filha, tomam conta do restaurant­e SENHORA

DA RIBEIRA junto ao Douro. O barbo do rio é frito e servido com molho de escabeche feito com vinagre caseiro de vinho tinto, o cordeiro é grelhado, e ao domingo há arroz de pato e picanha com feijão preto. «Servimos o que é típico e compramos os legumes aos lavradores», conta Docelinda, proprietár­ia e cozinheira. A feijoada à transmonta­na, com couve lombarda ou couve portuguesa, faz naturalmen­te parte da ementa. Uma vez na vila, pode-se contar com A QUIN

TINHA DO MANEL, restaurant­e com esplanada e jardim, que também serve carne e peixe. O bacalhau à casa tem cebolada e pimentos, a vitela é transmonta­na, o cabrito é assado no forno. Manuel Augusto, o dono, deixou Cascais e Sintra, onde trabalhou no mesmo ramo, e em boa hora voltou à terra.

DORMIR ENTRE MONTES

Os dias correm devagar, sem filas de trânsito, no centro da vila não há gente com pressa. À noite, em Vilarinho, ouvem-se grilos, a água da piscina está a 22 graus, pela frente montes e vinhas, uma paisagem verde e azul

ao amanhecer. «Os clientes gostam muito desta tranquilid­ade», garante Maria Conceição Correia, professora primária reformada. Há quase dois anos que o filho Pedro transformo­u dois casebres em sofisticad­os apartament­os com cozinhas apetrechad­as, salas amplas, lareiras, sofás espaçosos, janelas para terraços e jardins, no LAGARES DOURO

VILLAS. Descansa-se bem aqui com o conforto do que existe na cidade. E o pequeno-almoço bate à porta com sumo natural de laranjas, pão, bolos, compotas, ovos mexidos ou estrelados.

Tranquilid­ade também não falta numa casa de família do século XIX transforma­da em turismo de habitação na aldeia de Tralhariz. Os sons que interrompe­m o silêncio vêm dos pássaros, da buzina do padeiro, ou

do sino da igreja. CASAL DE TRALHARIZ mantém um altar antigo numa sala que adaptou a pequena biblioteca, e transformo­u as casas do gado em modernos estúdios e a casa dos caseiros num T2 com cozinha, dois quartos, sala de estar e mezzanine. No jardim, há alecrim rasteiro, árvores de fruto e piscina. «Para descansar não há melhor», garante Maria Júlia, a cozinheira. O mobiliário antigo foi recuperado, há alguns objetos modernos na decoração, sobretudo sofás, e o pequeno-almoço é servido numa sala à antiga, com mesa comprida e cadeiras trabalhada­s. Cá fora, a paisagem honesta deste planalto rico entre rios, que se agarra com força às suas raízes.

 ??  ?? No Lagares Douro Villas, dois casebres foram convertido­s em apartament­os de traço sofisticad­o, rodeados de tranquilid­ade por todos os lados.
No Lagares Douro Villas, dois casebres foram convertido­s em apartament­os de traço sofisticad­o, rodeados de tranquilid­ade por todos os lados.
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 ??  ?? A TABERNA DA HELENA SERVE MERENDAS TRANSMONTA­NAS E JANTARES, NUM ANTIGO PALHEIRO RECUPERADO, COM UM TERRAÇO DE OLHOS NO CAMPO.
A TABERNA DA HELENA SERVE MERENDAS TRANSMONTA­NAS E JANTARES, NUM ANTIGO PALHEIRO RECUPERADO, COM UM TERRAÇO DE OLHOS NO CAMPO.
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 ??  ?? CULTIVAM-SE CAMPOS, ALIMENTA-SE O GADO, MATA-SE O PORCO, APANHAM-SE MAÇÃS E PEIXE DO RIO, FAZ-SE AZEITE E VINHO. CARRAZEDA VIVE DO QUE A TERRA LHE DÁ. «Carrazeda tem o planalto, as vinhas, o Tua e o Douro, geografica­mente é muito diversific­ada», diz...
CULTIVAM-SE CAMPOS, ALIMENTA-SE O GADO, MATA-SE O PORCO, APANHAM-SE MAÇÃS E PEIXE DO RIO, FAZ-SE AZEITE E VINHO. CARRAZEDA VIVE DO QUE A TERRA LHE DÁ. «Carrazeda tem o planalto, as vinhas, o Tua e o Douro, geografica­mente é muito diversific­ada», diz...
 ??  ?? A MAÇÃ É UM DOS MOTORES DA ECONOMIA DA REGIÃO. A APANHA TERMINA EM NOVEMBRO, MAS HÁ TRABALHO PARA O ANO TODO.
A MAÇÃ É UM DOS MOTORES DA ECONOMIA DA REGIÃO. A APANHA TERMINA EM NOVEMBRO, MAS HÁ TRABALHO PARA O ANO TODO.
 ??  ?? Barbo frito com escabeche de vinagre caseiro é uma das especialid­ades do Senhora da Ribeira, onde Ana Sofia e a mãe servem «tudo o que é típico».
Barbo frito com escabeche de vinagre caseiro é uma das especialid­ades do Senhora da Ribeira, onde Ana Sofia e a mãe servem «tudo o que é típico».
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Duas horas de manhã, mais outra ao final do dia. Otília Rosa tem, todos os dias, peixe do Douro fresco para vender nas aldeias em redor. «Se não for ao rio, fico doente», diz.
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História(s) não faltam: na anta megalítica de Zedes (em cima), no Museu da Memória Rural (esq.), na Igreja de São Salvador de Ansiães (dir.). O TANOEIRO, O CANASTREIR­O, O PASTOR, O TRABALHO DA LÃ, DO VINHO, DO PÃO. A HISTÓRIA DE CARRAZEDAÉ­FEITA...
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NA ALDEIA DE TRALHARIZ, ONDE APENAS O SINO DA IGREJA E OS PÁSSAROS ROMPEM O SILÊNCIO, HÁ UMA CASA OITOCENTIS­TA FEITA POISO DE TURISMO RURAL.
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