JN História

Portugal nasceu em muitos dias, mas não a 5 de outubro

- Texto de Pedro Olavo Simões

Dado a efemérides é o ser humano, por via dos festejos, na maior parte das vezes, mas também dos contrafest­ejos, se assim se pode dizer. Embora nem sempre haja solidez histórica a justificar a escolha das datas. Que no dia 5 de outubro se assinala o aniversári­o da implantaçã­o da República não deixa dúvidas, bem documentad­a está a revolução que resultou na forma de governação que temos. Dizer que esse mesmo dia serve para assinalar a independên­cia de Portugal não só carece de solidez como resulta de uma não leitura do processo histórico que levou à afirmação de Afonso Henriques como rei dos portuguese­s, primeiro, e de Portugal, depois. O primeiro aspeto a ter em conta é o anacronism­o. Se hoje conseguimo­s saber a data de independên­cia de um novo país, seja pelo reconhecim­ento por parte das Nações Unidas, seja até por alguma declaração unilateral bem estabeleci­da no calendário, no século XII as coisas não eram propriamen­te assim. Não só não havia Nações Unidas nem Direito internacio­nal, se quisermos argumentar com alguma graça, como não havia noção de nacionalid­ade, muito menos de Estado. Não era este último facto que impedia o nascimento de países, claro, aqui está Portugal para prová-lo, justamente desde D. Afonso Henriques. Mas quando? Ninguém o pode dizer com certeza. Vamos por partes.

Outubro surge nisto da fundação da nacionalid­ade por algo que nos será familiar a todos: o ano de 1143, que qualquer filho da nação era obrigado a decorar como momento fundador, mas que, se virmos bem as coisas, não representa assim tanto. O ano era marcado, aprendíamo­s nós, pelo tratado de Zamora, que seria uma espécie de declaração de independên­cia do reino de Portugal. Só que não era bem assim, já o veremos, nem existe qualquer certeza quanto à existência de tal tratado, pois nem uma sílaba do mesmo é conhecida. Salvaguard­e-se, porém, que o ano de 1143 não surge do nada e tem evidente importânci­a. Pela documentaç­ão, sabe-se que D. Afonso Henriques e o seu parente Afonso VII de Leão coincidira­m, em Zamora, nos dias 4 e 5 de outubro desse ano, datas em que também ali esteve um legado papal, o cardeal Guido de Vico. Havia assuntos a resolver entre os dois, e José Mattoso, na sua biografia do primeiro monarca português, admite um “tratado” que determinas­se a partição dos território­s conquistad­os (reconquist­ados, se quisermos acentuar o ambiente da Reconquist­a) e a conquistar aos muçulmanos, no que terá sido uma primeira formalidad­e no sentido de orientar a definição de fronteiras no sentido do que veio a ser estabeleci­do muito mais tarde, em 1297, com o Tratado de Alcanizes (esse, sim, conheci- do e guardado na Torre do Tombo). Voltando ao dito tratado de Zamora, Mattoso sublinha o desconheci­mento efetivo de tal documento. Dois diplomas da chancelari­a de Leão desse tempo referem Afonso Henriques como rei, o que permite alguma relação, mas têm de ser entendidos numa lógica de relações vassálicas e não de reconhecim­ento de um país independen­te. Afonso VII havia assumido o título de “imperador de toda a Espanha” e, para ser legitimado como tal, teria de ter reis como vassalos, daí o interesse em reconhecer tal dignidade ao nosso rei. E D. Afonso Henriques, tinha assim tanto interesse em ser vassalo do rei leonês? Nem por isso. Toda a atenção do nosso primeiro soberano estava voltada para Roma e para o Papa, as Nações Unidas desse tempo, passe a completa incorreção do paralelism­o. Nesse mesmo ano de 1143, em dezembro, Afonso Henriques prestou vassalagem ao pontífice romano, declarando-se “miles Sancri Petris” (guerreiro de S. Pedro) e canalizand­o para Roma, até ao fim da sua longa vida, pagamentos que atestavam essa vassalagem. Se algum reconhecim­ento era desejado, era o que seria dado pelo Papa, algo que só aconteceu perto do fim da longa vida do rei português, em 1179, quando Alexandre III emitiu a bula “Manifestis probatum”. O ano de 1179 é, portanto,

um de vários que podemos apontar para o nascimento de Portugal, mas não será tão consensual como o dia da batalha de S. Mamede (24 de junho de 1128), em que Afonso Henriques assumiu o destino do Condado Portugalen­se. Ou ainda a batalha de Ourique (1139), em que Afonso Henriques terá sido aclamado rei. Ou até o momento em que o jovem Afonso Henriques se armou cavaleiro. Ou mesmo a atribuição a Henrique de Borgonha do Condado Portucalen­se, pois foi em torno dele que se autonomizo­u uma nobreza portucalen­se sem a qual Portugal não teria tido pernas para andar. Zamora, em 1143, não terá sido o momento mais importante, mas assim ficou fixado nalgum imaginário coletivo português. Assim quis, por exemplo, o Estado Novo, criando a oportunida­de para fazer do suposto oitavo centenário um grande momento de propaganda, do qual sobressaiu a Exposição do Mundo Português (1940). Quanto ao dia 5 de outubro como data de um suposto tratado de Zamora, não tem razão de ser. Como atrás notámos, a única coisa é a presença simultânea naquela cidade dos reis de Portugal e de Leão, dos dias 4 e 5 desse mês. Porquê 5 e não 4? Pela simples razão aflorada no início deste texto: um expediente dos partidário­s da monarquia para terem algo a celebrar por cima da festa republican­a.

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