Oliveira Martins
1845-1894
Se a evocação nestas páginas de Joaquim Pedro de Oliveira Martins passasse, em rigor e em exclusividade, pelo seu mérito enquanto historiador, estaríamos aqui a desperdiçar papel. Movendo-se num tempo em que a cientificidade da História já era uma premissa irrecusável, mesmo em Portugal (Herculano marcara o tom quando ele era ainda uma criança), assinou produção historiográfica que dificilmente assim poderá ser reconhecida, por ser instintiva e não baseada no conhecimento das fontes, por ser usada como forma de intervenção do autor na sociedade do seu tempo, por não dever ser hoje incluída em qualquer bibliografia séria que tenha como objetivo a História e não a História da historiografia. Mas Oliveira Martins foi muito mais do que isso: escritor de fina água, intelectual de excelência e autodidata, cidadão ativo, multifacetado e extraordinariamente prolífico, mesmo sem ter chegado a viver meio século.
É o nome de Oliveira Martins que surge à cabeça de magnos projetos de índole histórica, mas nele não encontramos o rigor, o método, o conhecimento das fontes primárias, enfim, o que já era sagrado para os historiadores oitocentistas, Alexandre Herculano sendo farol do avanço que a disciplina ia conhecendo entre nós. Martins era um cidadão empenhado no seu tempo. Tal como Herculano o fora, mas, se este procurava os temas que politicamente lhe convinham (ao liberalismo) sem transigir no austero rigor científico em cujo estabelecimento participava, aquele era sobretudo guiado pelo fulgor da escrita, por um impulso mais apaixonado, até, do que dedutivo, em suma, pela inspiração. O mérito de Oliveira Martins era, e assim permaneceu, muito mais literário do que científico. Isto, não obstante manifestasse sempre uma intencionalidade associada à instrução e consequente iluminação dos cidadãos, ideia mais do que plasmada no que ele pretendia ser a obra magna da sua vida, a redação de uma colossal “Biblioteca das Ciências Sociais”.
Escrevia ele, ao anunciar a intenção, em 1879: “Esta biblioteca (...) destinada a vulgarizar entre nós conhecimentos essenciais à vida de uma nação, destina-se não só ao público em geral, mas também ao ensino secundário, que é o alicerce indispensável da sólida ilustração de um povo [...] Alheia a todo e qualquer ponto de vista partidário” ( apud Joel Serrão, in “Dicionário de História de Portugal”). Tal empreitada não era, claro, apolítica. Assumia-se de certo modo por uma tentativa de mudar um estado de coisas que sempre contrariara a afirmação política do autor, designadamente em candidaturas nas fileiras do pouco significativo Partido Socialista Português. Mas a vida foi curta e, embora Martins tenha deixado escrita uma vastíssima obra, não pôde cumprir o ambicioso plano. Mas arrancou, com duas obras de grande ambição, publicando a “História da Civilização Ocidental” e a “História de Portugal”. A parca tiragem destes livros (500 e 600 exemplares, respetivamente) espelha o pouco interesse da minoria letrada de um país esmagadoramente analfabeto, mas ambos permaneceram como clássicos. Não da historiografia, mas do génio inventivo de um homem que traçou o seu destino, um engenheiro que não era engenheiro, um intelectual de alta craveira, nome sonante da chamada “Geração de 70” e do grupo “Vencidos da vida”, cujo nome terá sido sugerido por ele próprio, ao lado de figuras como Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão ou Eça de Queirós. O singular percurso deste homem foi traçado, como tantas vezes sucede, pelos tropeções da vida. A morte prematura do pai, vitimado pela febre amarela quando o jovem Joaquim Pedro tinha 15 anos (1857), alterou bruscamente um percurso que, sem que houvesse riqueza na família, significaria, em condições normais, o prosseguimento dos estudos e o ingresso no ensino superior. Oliveira Martins, que sonhava tornar-se engenheiro militar, teve desde logo que se empregar como ajudante de escritório, para ajudar a equilibrar as contas domésticas, mas nunca deixou, como pôde, de devorar tudo quanto podia ler, orientando a própria formação (informal) e adquirindo a consciência social e uma vontade de mudança que, à época, era algo entre o republicanismo e o pensamento socialista bebido dos escritos de Pierre-joseph Proudhon. Pensador, sim, multidisciplinar, também, senhor de verve afiada e afinada, sem qualquer tipo de dúvida. Historiador seria, mas o tempo retirou notabilidade – nesse aspeto, que não o literário – ao que produziu. Foi tudo e tudo foi com profundo empenho pessoal, a par de uma vida profissional de que não podia abdicar. Em 1874, mudou-se para o Porto, para participar na construção da ligação ferroviária entre o Porto e a Póvoa de Varzim, dirigindo tecnicamente a linha até 1888. Aos 15 anos deixara de estudar oficialmente, antes dos 30 era “engenheiro”.