O QUE HÁ NA CATALUNHA É UM MOVIMENTO CÍVICO DE MASSA
Dos fenómenos independentistas ao que escondem os chamados populismos, a visão de um conhecedor profundo dos fascismos europeus, que é também um cidadão politicamente ativo
Querer discutir os fascismos europeus e não ouvir Manuel Loff é, evidentemente, empobrecer a discussão. O mesmo quanto a não ouvir o que tem a dizer sobre a Catalunha este historiador, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que tem repartido o essencial da sua vida de investigador entre Portugal e Espanha e que, por via de manter um espaço de opinião regular na Imprensa, tem refletido muito sobre o tema. Se há momento apropriado para o ouvir, diz-nos o mundo, com o que nele se passa: é este.
Saber História e trabalhar nela dá solidez a quem comenta a atualidade?
Naturalmente. A História permite uma compreensão do presente e ajuda a reunir as poucas capacidades que temos de prever determinado tipo de comportamentos, ainda que não admita a antecipação. Por outro lado, ajuda a relativizar o presente. Há este vício permanente de dizer “é a primeira vez que acontece”, mas não, na maioria dos casos nunca é a primeira vez.
Parece que as pessoas tendem a não ter essa capacidade de usar a História como ferramenta. Entre os que deviam fazê-lo também se vê a mesma resistência a olhar para trás?
Existe um culto do futuro, um vício permanente do presentismo. Há um novo ciclo histórico, que se inaugurou no final dos anos 80 e início dos anos 90, e não é só o que coincide com a implosão do modelo soviético, apenas um dos modelos de regimes que se autodefiniam como comunistas e terminaram, pois há outras vias de comunismo que se mantiveram. Dez anos depois da chegada da Thatcher ao poder, atingiu-se uma fase de amadurecimento do neoliberalismo, que impôs uma viragem na vida económica e social à escala mundial, a que se tem chamado globalização. Nesta era, é impressionante como não só os jovens mas também a grande maioria de nós, os que leem jornais, consomem informação dos media e, nalguns casos, até nela participam, mostram um vício muito evidente de considerar tudo novo. Têm grande dificuldade em perceber as raí- zes, até relativamente recentes, da maioria dos problemas atuais, e ainda em comparar. É o vício do presentismo.
O desprezo pelo passado?
Completamente! E não é só um passado com centenas ou milhares de anos. Pode ter simplesmente 60 ou 70 ou 80 anos. Provavelmente até ao final dos anos 80, a História tinha recomeçado em 1945, e depois ela recomeçou em 1989. Eu conheço alguns especialistas, na área das relações internacionais e da política internacional, que tendem a dizer que tudo anterior a 1989 é uma espécie de História totalmente ultrapassada, quando é evidente que grande parte dos problemas da atualidade, a começar até por Portugal, não nasceram depois de 1989 e nem sequer se configuraram depois de 1989. São anteriores, como é natural.
Gostava de perceber como traça fronteiras entre o historiador, o comentador da atualidade e o cidadão politicamente ativo.
Tento, no comentário, não ser completamente opinativo e notar que não há nenhum discurso científico que seja “neutral” ou “completamente objetivo”. A ciência faz um esforço de objetividade e só consegue fazê-lo assegurando que usa uma metodologia de natureza científica, o que significa reunir o maior número de dados relevantes sobre a realidade e, com determinados instrumentos, saber interpretá-los. Se me pedem uma opinião, em três minutos e meio, sobre determinado aspeto, é difícil. A televisão tem muito pouca “paciência”.
Precisa de ritmo...
Mas é verdade que, em todos os casos, um dos meus esforços é o da relativização. Um caso muito evidente: a tese, muito corrente nos nossos dias, de que o processo independentista catalão tem cinco anos e é uma iniciativa, desgarrada de raízes históricas, de uma pequena elite. Nada a ver. É um ponto de chegada de um processo que, no mínimo, tem cem anos.
Podíamos recuar à Idade Média...
Claro! Reduzir os problemas aos últimos anos é uma atitude preguiçosa. Esta espécie de memória que nos leva a um ou dois governos atrás, uma ou duas legislaturas atrás. Outro exemplo: o Trump. O trumpismo é alguma novidade? Eu estava em Itália quando o Berlusconi chegou ao poder. O berlusconismo é (à escala italiana, num outro contexto, com outra personagem) a mesma coisa. Não é rigorosamente a mesma coisa, mas é perfeitamente comparável e criou as condições para demonstrar que, nas chamadas “democracias consolidadas” e em economias pós-industriais do Ocidente, fenómenos desta natureza são viáveis.
Já voltamos à Catalunha. Pergunto agora se são poucas as vozes de esquerda, hoje, a escrever na Imprensa.
Claramente. Houve uma viragem muito evidente, que eu acho que começou há 25 anos e que se foi agravando, a partir de um dos mais persistentes mitos, que a direita portuguesa importou de fora. O mito é que há uma ditadura cultural de esquerda, que vigora na Europa intelectual, cultural, académica, escolar, artística, etc, desde o fim da II Guerra Mundial. Há algumas figuras da direita intelectual que o sustentam, para o caso português, e dizem que essa ditadura começou também aí, em Portugal, o que faz com que estivéssemos assim a dizer que os meios de comunicação e a universidade do período salazarista estavam sob uma ditadura cultural de esquerda!...
Surge então uma contraditadura?
A partir daí, criou-se uma espécie de interesse pelas vozes de dois tipos de direita. Primeiro, uma nova direita liberal, que se queixa permanentemente de não existirem liberais em Portugal, à esquerda e à direita, que acha sempre que está isolada, como se o mundo empresarial, como se o pequeno capitalismo português não fosse, logicamente, liberal. Depois, há uma outra direita, neotradicionalista, frequentemente monárquica, que entende que grande parte da experiência recente portuguesa veio violentar o mais substancial, sólido e telúrico da identidade portuguesa. E opta por fazer um discurso contra a modernidade portuguesa, não a que se inaugurou com o 25 de Abril de 1974, mas até, sobretudo, a que se inaugurou com o 5 de Outubro de 1910. Entre a tese da ditadura cultural de esquerda e a emergência destas direitas, uma parte substancial dos meios de comunicação de referência passou
a convidar, a manter e a dar voz muito regular a pessoas que baseiam a sua opinião e a relevância ou a necessidade social dela na ideia de que são minoritários. Não são. São hegemónicos.
Há o risco do pensamento único?
Menos do que até há 10, 15 anos. Quer dizer, o pensamento único nunca é único. Existe a capacidade de, a partir, nomeadamente, da opinião publicada e da universidade, produzir opinião alternativa a um pensamento neoliberal com aspetos de neoconservadorismo muito evidente, que volta à ideia da supremacia do Ocidente como único porto seguro da humanidade inteira. Até aos últimos anos antes do arranque da crise internacional, em 2007, 2008, a hegemonia era tão pesada que dava, praticamente, a aparência de pensamento único.
Vamos à questão catalã. Não a compreender resulta mais do desconhecimento do passado ou da ideologia?
Das duas coisas. Não tenho opinião definitiva sobre a bondade ou a maldade da independência catalã. Há muito que, estudando o caso espanhol e vivendo longas temporadas em Espanha, me convenci de que a melhor solução seria uma solução federal, mas não deixo de reconhecer que o movimento independentista catalão se transformou num movimento cívico de massa, com muitos aspetos de irreversível. Não posso prever, enquanto historiador, mas é muito diferente de outros movimentos que, nomeadamente no período da austeridade no Sul da Europa e um pouco por todo o mundo, acabaram por entrar em refluxo. Este não entrou. Agora, há muito de ignorância. A forma como encaramos a independência catalã é profundamente ideológica e tem muito a ver com a nossa relação (enquanto cidadãos portugueses) com o que imaginamos ser a Espanha e, também, o que imaginamos serem os estados-membros da União Europeia. E se, por exemplo, embarcamos na tese de que qualquer forma de secessão num país da União Europeia (vide o caso escocês, vide agora o caso espanhol) tende à desagregação da própria União...
Na Escócia é ao contrário: são pró-europeus “traídos” pelo Brexit...
Quando o referendo escocês foi feito, o Estado britânico não discutia sair.
Mas havia essa perceção...
Sim, e a ironia é essa. Os escoceses votaram para sair, querendo manter-se na UE a todo o preço, com o Reino Unido a dizer – como a Espanha diz – “se saírem, ficam fora da União Europeia”, e agora é o inverso. A única forma de se poderem manter na UE é tentarem sair do Reino Unido.
Voltemos à desagregação da UE.
E a essa abordagem ideológica que diz que qualquer secessão tende à balcanização da União Europeia (o que é um enorme exagero). Analisando assim, posso fazê-lo tanto a partir da esquerda como da direita. Da mesma forma como (e isto acontece no caso português) há quem se posicione a favor da independência da Catalunha. O discurso à direita tem sido de dizer que essa é uma postura que vem da esquerda, mas muita gente à direita tem claramente criticado a atitude do Governo espanhol, fazendo o paralelismo entre o caso espanhol e 1640. Se há feriado tipicamente nacionalista, mais do que o 10 de junho, é o 1.º de dezembro.
Tenho notado, à esquerda, críticas à afirmação do nacionalismo, mas o internacionalismo só pode existir se houver nacionalismos, não?
O internacionalismo operário, imaginado pelo socialismo, primeiro pelos chamados utópicos, depois pelo socialismo marxista, nasce na era do nacionalismo. Faz a crítica de um nacionalismo consolidado na Europa da segunda metade do século XIX, na sua pior versão, a dos nacionalismos de Estado. A crítica que hoje tem sido feita aos nacionalismos ignora que o nacionalismo é um discurso que se acrescenta a outra ideologia. Nenhum nacionalismo tem substância se não tiver um outro substrato ideológico. Podemos ser nacionalistas e quase tudo. Quando ouço a tese de que o nacionalismo é sempre dos extremos, eu não sei que nacionalismo é que havia na extrema esquerda, mas sei que era comum na extrema direita, quando foram os liberais. São as revoluções do século XVIII, a começar pela norteamericana, mas centremos naquela que criou o padrão, a francesa, que são nacionalistas. Podemos hoje julgar que elas lidaram mais com o conceito
do de direito. O Estado Novo era um Estado de direito na sua autodefinição. O 25 de Abril cabia nele?
Sem entrar nas ideias pós-modernistas, parece-lhe que as pessoas tendem a querer decretar o fim da História, pensando que as grandes mudanças já não são admissíveis?
É como se vivêssemos uma nostalgia da tese do Fukuyama do fim da História. Já todos repetimos que a tese estava errada, ou seja, que a História das alternativas à liberal- democracia, tal qual ela esta definida, não terminou no início dos anos 90. O fim da União Soviética, por muitos motivos, não estritamente políticos, marca o início de um ciclo, mas não tenho motivos para achar que é o fim de um ciclo de emancipação da História mundial, que começou no final do século XVIII, com a Revolução Francesa, prosseguiu com o fim da I Guerra Mundial e a desestabilização do mundo capitalista colonial que conhecíamos, a Revolução Russa, depois o desafio do fascismo, depois o antifascismo e a sua vitória em 1945, e depois, por último, dois novos grandes movimentos emancipatórios, o movimento de emancipação anticolonial e o movimento de emancipação dos jovens, das mulheres, das minorias. Ainda há muita emancipação por fazer.
Passemos do fim da União Soviética ao seu início, a propósito da Revolução Russa (ou soviética, ou bolchevique...). O que falhou no caminho para o socialismo?
Uma infinidade de coisas, claro. As revoluções são momentos de enorme criatividade e de uma perceção evidente, por parte de um número de pessoas muito superior ao normal na generalidade dos processos de mudança, que intuem subitamente que é possível mudar e que, mais ainda, num momento habitualmente de grande fragilidade ou das estruturas do Estado e da sua capacidade de coerção ou dos grupos sociais dominantes, percebem ainda que vale a pena participar na mudança. Os grupos sociais dominantes, habituados a participar em qualquer mudança, ou em qualquer processo histórico, também participam, de forma a contrariar essa mesma mudança. A novidade dos processos revolucionários é que os habituais perdedores, aqueles a que há alguns anos nós cha- mamos os subalternos, percebem que há uma grande oportunidade que se lhes abre. O impulso inicial é inegavelmente emancipatório e, no caso da Revolução Russa, acrescenta dimensões que as revoluções liberais do final do século XVIII não tinham, particularmente em três áreas: uma já estava enunciada, mas não completamente, que era a da autodeterminação nacional; outra é, na crítica da desigualdade e da dominação de classe, abrir caminho à libertação, à emancipação das raças dominadas, ou seja, da lógica (e o conceito de raça utilizado, evidente- mente, no contexto da época) daquilo que se entendia ser o domínio perfeitamente legítimo de três quartos do planeta por parte do mundo colonial europeu; por último, uma dimensão que as revoluções liberais nunca tinham colocado, que é a crítica, pelo menos, da dominação de género, os fenómenos da emancipação das mulheres, da igualdade de direitos, até mesmo, pelo menos até bem entrada a fase estalinista, à emancipação de outras minorias de natureza étnica, religiosa e até de orientação sexual. Nos anos 30, quer no campo dos direitos das mulhe-
mente subsequente, o terror das fomes provocadas pela coletivização forçada da terra, 1930-1933, e depois as grandes purgas, 1936-38. Noto eu agora que é um período plenamente estalinista, com uma gestão substancialmente diferente: a grande maioria da vanguarda revolucionária de 1917 já não está na gestão do estado soviético, nesse momento.
A tentação totalitária, aqui materializada no estalinismo, é uma consequência natural do impulso revolucionário socialista?
Não acho que seja. Houve, inevitavelmente, terror vermelho na guerra civil. Mas quem provocou a guerra civil? Estava no quadro da revolução bolchevique a ideia de que a mudança social tem de ser feita pela via violenta? Eu não sou especialista na revolução russa, mas não creio... A lógica da violência praticada pelos revolucionários no período imediatamente subsequente à revolução, pelo menos a partir da paz de Brest-litovsk, em março de 1918, e durante a guerra civil, é produto, como acontece com a revolução francesa, da contra-revolução, que não hesitou, ela sim, em usar da violência. Contesto a aplicação da teoria totalitária para irmanar nacional-socialismo, fascismo e, do outro lado, o comunismo. Não é verdade. O fascismo e o nazismo têm no seu ADN não a violência como sim- plesmente prática, mas o elogio da violência como instrumento central na regeneração da sociedade. Esse culto à violência não nasce com o nazismo, e muitos historiadores dizem que é herdado da violência colonial. Não está em nenhum ponto da formulação do essencial do que é a ideologia socialista.
Mas deve ser objeto de crítica, certo?
É perfeitamente criticável, e deve analisar-se a evidente contradição com o ideário revolucionário. Mas outra coisa é o momento em que revolucionários, como os bolcheviques ou os jacobinos, usaram da violência: em que contexto foi e em reação a quê. E as contradições profundas que o uso da
“C U LT O À V I O L Ê N C I A NÃO NASCE COM O NAZISMO, E MUITOS HISTORIADORES DIZEM QUE É HERDADO DA V I O L Ê N C I A C O L O N I A L”
mente a Constituição de 1976.
Então, eram todos socialistas...
Todos! Já o sabemos... E isto é cinco meses depois do 25 de Novembro. O segundo processo que não trava é o processo da socialização da propriedade. Mas também o sabemos entender. Aí vivíamos, eu creio que a esquerda radical e, designadamente, o Partido Comunista Português e aqueles que se reivindicavam da esquerda revolucionária, percebendo a natureza do 25 de Novembro, apressaram-se na tentativa do que se poderia designar como a legalização da revolução. Antes que isto dê uma volta para trás, vamos, não pela via da transformação objetiva da realidade, revolucionária, mas legal, ocupar as terras e fazer com que a lei garanta a legalidade da ocupação da terra, da sua socialização. E é verdade, dizem os historiadores que o analisaram, a maioria do processo de socialização da propriedade e da constituição de UCPS no Alentejo e em partes do Ribatejo e até da Beira Baixa, ocorre depois do 25 de Novembro. Agora, eu acho que há uma evidente natureza contra-revolucionária.
E a ideia de que caminhávamos para uma ditadura de esquerda?
Isso é outra discussão, a velha coisa de ver se a História confirma, ou não ( não!...), que o Partido Comunista e certos setores de uma chamada extrema- esquerda tinham um projeto de uma democracia popular para Portugal. Não, nunca se encontrou o projeto. O 25 de Novembro ocorre dois meses e meio após a queda do último governo de Vasco Gonçalves. A substituição das chefias militares e do essencial dos quadros que dirigem a política económica e social no país está feita a partir do início do governo Pinheiro de Azevedo, e este representa a hegemonia evidente do PS e do então PPD no processo político. O 25 de Novembro confirma que essa perda está feita e vem retirar qualquer ilusão, até dentro da chamada esquerda revolucionária, em forçar uma evolução, sempre dentro de um país, sempre dentro do contexto do que é a Europa ocidental em pleno período da Guerra Fria. Não há nenhuma tentativa de fazer Portugal sair da NATO durante todo aquele período. Com muita esquerda a criticar abertamente, com a própria Constituição a criticar abertamente não a NATO mas os blocos político- militares no seu conjunto, não houve nunca essa tentativa nem nenhum dos passos necessários para uma rutura. A constituição de um regime do tipo soviético, das chamadas democracias populares da Europa oriental, ou de tipo guevarista, ou de tipo chinês, em Portugal, não estava num horizonte minimamente razoável. Não falo de organizações de 0,1%. O que houve, particularmente na primavera e verão de 1975, foi um puxar da corda para o lado esquerdo, o mais possível, para ver onde é que ela podia parar. Com a queda de Vasco Gon-
“FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO É UMA IDEOLOGIA POLÍTICA. O ISLAMISMO É-O, COMO FORAM O CATOLICISMO SOCIAL DO LEÃO XIII E O CATOLICISMO U LT R A M O N T A N O DO PIO IX”