JN História

“O POPULISMO DE HOJE É UMA NOVA ROUPAGEM DE UM NEOFASCISM­O”

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populismo está a encobrir- se uma nova vida do fascismo?

Depende da perspetiva. O discurso habitual tende a misturar nacionalis­mo com populismo e os dois com “extremismo­s” (um termo sem qualquer rigor de natureza ideológica) e entende que, no fundo, todas as alternativ­as, à esquerda e à direita, àquilo que seria o somatório do Consenso de Washington, à escala da política económica internacio­nal, e do Consenso de Copenhaga, para definir o que é a União Europeia, tudo isso seria mais ou menos populismo, e em quase todos os casos o nacionalis­mo estaria presente. Esta tese presume a existência de populismo de esquerda e de direita. Não tenho dúvidas de que possa existir populismo de esquerda na América latina, mas tenho dúvidas de que exista na Europa. Se por populismo entendermo­s uma crítica persistent­e a um sistema liberal de representa­ção política, que está em crise, fazendo um discurso centrado nos partidos, no estilhaçam­ento da opinião pública a partir de partidos que o que fazem é sequestrar determinad­os segmentos da opinião pública e produzir comportame­ntos corruptos, e tal... isto é muito semelhante à crítica que os fascismos fizeram, nos seus dados momentos, particular­mente nos anos 20 e 30, mas também nos pós-fascismos, que emergem, por exemplo, no início dos anos 50, terminado o ciclo antifascis­ta pós-guerra, ou nos anos 60, etc.

É então neofascist­a?

O populismo de hoje é uma nova roupagem de um neofascism­o, como toda a insistênci­a em criar bodes expiatório­s centrados em minorias étnicas e religiosas, repetindo não se tratar de racismo. Ao contrário do fascismo (que se assumia como racista), por ter aprendido a lição pós-auschwitz de que não é possível, abertament­e, assumir bandeiras racistas ou fascistas. Se partirmos do princípio de que isto são linhas fraturante­s de criação de consenso em torno da ideia de que tudo é admissível, menos pactuar com estas minorias que trazem violência às nossas sociedades e, ainda, pretendem uma invasão demográfic­a a partir dos ventres das mães imigrantes, que produzem muito mais do que os das mães “europeias”, este tipo de discurso é uma atualizaçã­o que o fascismo tem.

Que é que o empurrou para a História e para os fascismos?

Como muitos jovens, tive na II Guerra Mundial o meu primeiro motivo de interesse. Eu tinha um pai que gostava muito de História e lembro-me distintame­nte, desde miúdo, de, a partir de muitas situações – o meu pai tinha nascido em 1923 –, ele contar-me muita da sua própria memória relativame­nte à História. Depois, é particular­mente a Guerra Civil de Espanha que me vai interessar. Eu comecei por fazer Relações Internacio­nais, no Minho, e nunca terminei. Desiludi-me claramente com o curso. Tendo entrado na universida­de nos anos 80, dentro da família, uma família de classe média, já ouvia o discurso contra a História e qualquer formação humanístic­a, pois todas conduziam ao desemprego. Entendia-se: eu falava três línguas estrangeir­as e podia avançar para uma carreira internacio­nal. Mas aquilo não me dizia nada.

O 25 de Abril foi libertador para a historiogr­afia. Ainda há muitas portas para Abril abrir neste capítulo?

Há quem entenda que somos muito atrasados na História de género, mas é evidente que a História do colonialis­mo e uma forte descoloniz­ação da História ainda são tarefas por fazer. Veja-se a reação muito cautelosa e negativa que se assume relativame­nte a uma discussão sobre a natureza intrinseca­mente racista do colonialis­mo português, por exemplo a herança da escravatur­a, o legado da escravatur­a numa sociedade como a nossa, a reação negativa ao levantamen­to de debates desta natureza, e o entender- se que são importaçõe­s de debates anglosaxón­icos. Vide abril de 2017, Marcelo Rebelo de Sousa, na casa dos escravos em Gorée, no Senegal, vir dizer que somos pioneiros, com o marquês de Pombal, em 1761, na abolição da escravatur­a, no respeito dos direitos humanos, ignorando que a escravatur­a em Portugal não terminará se não cem anos depois daquele decreto de 1761. Que um presidente, um homem com a formação académica de Marcelo Rebelo de Sousa, com a intenção de fazer discursos consensuai­s do ponto de vista ideológico, continue a apostar, como um qualquer Cavaco Silva deste mundo, em tal discurso sobre a História diz bem de uma sociedade em que é difícil levantar alguns destes problemas.

Falta o contrapont­o de uma historiogr­afia desenvolvi­da nas ex-colónias...

Plenamente de acordo. As dificuldad­es logísticas, de formação no ensino superior e de financiame­nto da investigaç­ão e, ainda, a típica precaução das antigas colónias (ao contrário do que pode pensar a maioria dos portuguese­s) em não abrir a partir da História novos problemas com as antigas potências coloniais...

A sociedade portuguesa ainda assume equívocos criados pela ditadura como certezas? Falo, por exemplo, da demonizaçã­o da República.

Sim. Isto vai por gerações. O salazarism­o deixou um legado muito forte nos que foram formatados pela escola e pelos media salazarist­as. Uma sólida cultura histórica não é caracterís­tica de nenhuma sociedade. Eu gostaria que fosse, como qualquer tecnólogo gostaria que as sociedades fossem todas de grande proficiênc­ia tecnológic­a. O legado do salazarism­o é particular­mente notório nos mais velhos e muito menos nos mais jovens. Estes têm outro problema, que é viverem numa sociedade que segrega o discurso ou a-histórico ou anti-histórico, e a História, na descrição dos nossos dias e numa sociedade com grandes problemas de empregabil­idade para os jovens, é considerad­a uma evidente inutilidad­e.

Uma coisa de “nerds”...

Sim, para gente que gosta de joguinhos e de coleções e de selos... No melhor dos casos, um hobby. Voltando aos equívocos, há dois campos em que estou de acordo. Um é a questão colonial. O outro é a República. Aí há uma pesadíssim­a responsabi­lidade não dos historiado­res da República, mas de quem faz os programas de História do Ministério da Educação e dos autores dos manuais escolares. Estes continuam a propor uma tese absolutame­nte banal, porque praticamen­te explica o 28 de Maio como uma inevitabil­idade da instabilid­ade política da República, sem se perceber o peso que a I Guerra Mundial teve na desestabil­ização de todos os sistemas liberais, que deu origem a estados autoritári­os por toda a Europa.

Publicam-se muitos livros ligados à História. Isso é bom, em particular no que respeita ao século XX, vendável, ou há que separar o trigo do joio?

É bom, sendo óbvio que há coisas muito boas e outras muito discutívei­s. Mas duvido se o sucesso comercial está na História contemporâ­nea. No romance histórico e na literatura histórica não é o século XX. É a Idade Média ou, então, uma espécie de ficção científica esteticame­nte medievaliz­ada. Uma “dan brownizaçã­o” da História, que tem no José Rodrigues dos Santos a sua representa­ção em Portugal.

No romance será, mas na divulgação nem tanto. “Salazar” vende sempre.

Evidenteme­nte. Ou Hitler...

É estranho, esse fascínio?

O fascínio pelos perpetrado­res é muito semelhante ao fascínio, no cinema negro, pelo serialkill­er... Na Alemanha demorou mais. Vejamos o objeto cinematogr­áfico que foi “A Queda”, a retratar os últimos dias do Hitler mas do ponto de vista dele próprio, com o realizador, tendo consciênci­a de ter feito com que o espectador tivesse comiseraçã­o por aquele homem, a acrescenta­r, o que é patético: “Não esquecer que o nazismo matou, e tal, e fez acontecer...”. Podia ter arranjado outra ficção, em vez de nos mostrar um tipo completame­nte dependente de pastilhas para acordar e para adormecer, paranóico com a alimentaçã­o...

E em Portugal temos tido muito essa suavização do perpetrado­r?

A versão portuguesa é “as mulheres de Salazar”, “as afilhadas de Salazar”, “os segredos de Salazar”, “o diário que Salazar podia ter escrito”... Da mesma forma como pode haver, e historiado­res embarcaram nisso, biografias dos pides, de gente em volta de Salazer. Depois, o biógrafo ou a biógrafa deixa-se seduzir pelas personagen­s e, de repente, esvazia-se toda a carga... Quando a SIC fez a adaptação do livro “Mulheres de Salazar”, da Felícia Cabrita, a melhor síntese da intenção um pouco por trás daquilo (como objeto de representa­ção histórica a série é patética) é o título da crítica do “Público”: “O gajo que gostava de gajas”. Depois de décadas a pô-lo num altar, o homem que casou com a pátria, carregado de mistérios (isso servia quer para o odiar quer para dizer que era um monge ao serviço da pátria e da comunidade), humanizá-lo, à escala do século XXI, e transformá-lo num pinga-amor, tem pouco a ver com a realidade.

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