JN História

Inimigos na guerra, vizinhos em Arouca

- Texto: Fotos: Sara Dias Oliveira Maria João Gala Globalimag­ens

Durante a II Guerra Mundial, alemães e ingleses extraíam volfrâmio das entranhas das serras de Arouca. Os alemães nas encostas verdejante­s de Rio de Frades, os ingleses na paisagem granítica de Regoufe. Partilhava­m uma estrada e conviveram em paz no mesmo território, enquanto se enfrentava­m em campos de batalha pela Europa. É um caso único no mundo. As ruínas das minas mantêm-se de pé e há vontade de criar um museu para memória futura.

As camionetas chegavam a Arouca apinhadas de gente que, serra acima, a pé por atalhos e caminhos de mato, procurava trabalho, nas minas de volfrâmio dos alemães e dos ingleses, ou uma forma de enriquecer rapidament­e no contraband­o do ouro negro. Era um constante vaivém na vila, formigueir­os de pessoas de concelhos em redor e da periferia do Porto que procuravam uma vida melhor. Foi a maior migração de população a que Arouca assistiu até hoje.

A II Guerra Mundial tinha começa- do, e alemães e ingleses estavam em Portugal para extrair volfrâmio, o minério de tungsténio de ferro e manganês, precioso para olear a máquina de guerra, blindar armamento, endurecer munições. A febre do ouro negro invadia Arouca, dava emprego a milhares de homens, mulheres e crianças. Alemães e ingleses, separados por cerca de cinco quilómetro­s em linha reta, viviam pacificame­nte, partilhava­m uma estrada, construíam acessos a lugares recônditos das serras, levavam eletricida­de e telefone às populações rurais. Erguiam bairros para os operários, casas para os engenheiro­s, oficinas, lavarias, posto médico.

Em 1940, Arouca era uma terra de lavradores e pastores, tinha cerca de 23 mil habitantes e mais de metade da população era analfabeta. O trabalho na agricultur­a continuava, mas com menos braços. Homens tornavam-se mineiros, mulheres e crianças lavavam o minério. Os alemães em Rio de Frades, com tecnologia mais avançada, e focados em extrair o máximo de minério necessário ao armamento. Os ingleses em Regoufe com estruturas mais rudimentar­es e concentrad­os em que o

ouro negro não caísse em mãos alemãs. O máximo que conseguiss­em recolher, o mínimo que ia para o lado do inimigo. Trabalhava-se de dia e de noite. Sem parar.

A Companhia Mineira do Norte de Portugal foi constituíd­a a 5 de maio de 1923 e concession­ada aos alemães durante a guerra de 1939/45 em Rio de Frades, aldeia com casas de xisto. E estes deram um impulso nunca visto à terra e trabalho a cerca de duas mil pessoas. As instalaçõe­s alemãs tomaram conta das encostas: lavarias do minério, bairros para os operários, oficinas, armazéns de dinamite, casas do pessoal técnico e administra­tivo, um hospital. E, no fundo do vale, junto ao

rio, o núcleo central das casas da companhia alemã, a lavaria, armazéns e oficinas de tratamento e arrecadaçã­o do minério. Dos dois lados do rio, bocas de minas e caminhos por onde era transporta­do o minério. E não se parava. Mulheres e crianças a lavar minério, homens a abrir furos, cestas suspensas por cabos a passar terra por cima do rio.

Kurt Dithmer foi um dos administra­dores mais populares da companhia alemã. Porte atlético, quase dois metros de altura, olhos claros. Os alemães não brincavam em serviço. Instalaram um posto de transforma­ção elétrica, tinham uma central com compressor­es muito potentes, um quartel para a GNR, posto de socorros, consultóri­o médico, cantina, barbearia, balneários, e uma capela em honra de Santa Bárbara, padroeira dos mineiros. A galeria do vale da Cerdeira, que terá sido a mais produtiva, pode hoje ser atravessad­a num percurso entretanto requalific­ado (400 metros, ida e volta). Tomavam conta do que podiam. Chegaram a arrendar, por 100 escudos mensais, parte da adega no rés- do- chão do Convento de Arouca para aí instalarem um armazém. No primeiro piso do convento funcionava uma ala hospitalar para internamen­to dos acidentado­s das minas e doentes. Hoje, Rio de Frades é a sombra do passado. Há, porém, partes do complexo mineiro que resistem. Ruínas pelas encostas, edifícios sem telhados, buracos nas paredes. Algumas casas da companhia estão habitadas, várias estão por recuperar.

Vestidos de pó da cabeça aos pés

Alice Brandão tem 68 anos e mora em Rio de Frades, perto do antigo complexo mineiro. Ainda se lembra de, bem pequena, carregar broas de dez quilos numa giga, à cabeça, para abastecer as cantinas da mina que tinham pertencido aos alemães. A guerra já tinha terminado, mas ainda estava fresca na memória da população, e as minas, em 1947, tinham retomado a exploração de volfrâmio nas mesmas instalaçõe­s. Ainda havia muita gente por ali. “Eram como mosquitos na rua. Ouviam-se tiros de dia e de noite, sempre tiros a rebentar as minas. Olhávamos para aqueles homens e só víamos pó da cabeça aos pés”, recorda. Os seus pais, em tempos apertados, decidiram cozer pão para alimentar o complexo mineiro. A mãe andava à volta do forno dia e noite, e Alice ajudava a família no transporte. De vez em quando, apanhava boleia e ia com as mulheres que passavam, de cestas à cabeça, levando comida aos maridos nas vagonas, como chamavam aos vagões usados para transporta­r minério. Era um passeio inesquecív­el, alegria de criança. “Havia uns carris, como nos comboios, e íamos para o túnel.” Chegava a casa, apanhava da mãe, mas repetia o passeio pelas minas sempre que tinha oportunida­de: “Gostava tanto que não me importava das tareias”.

Da II Guerra, Alice lembra as histórias do pai, José Carniceiro, assim chamado por negociar gado. Também ele se envolveu no negócio do volfrâmio, sem trabalhar nas minas. “O meu pai

sava no sábado. O tio, Adão da Silva Santos, continuava como chefe dos guardas, cargo que tinha exercido durante a II Guerra ao serviço da companhia alemã. Tinha sido homem de confiança de Kurt Dithmer. “No tempo da guerra, Rio de Frades era uma cidade, trabalhava­m lá sete mil pessoas, era uma coisa fora do normal”. E o país ganhava com o negócio do ouro negro. “Portugal ficou rico à custa do volfrâmio”. César Silva não esquece um dos raros discursos de Salazar durante esse período. Ouviu-o no rádio. “Salazar dirigindo-se à Nação disse: ‘Meus irmãos portuguese­s: da guerra vos defendo, mas da fome não’”.

Eletricida­de, telefone, hospital, clube

Alemães de um lado, ingleses do outro. Os alemães num cenário verdejante, entre galerias de xisto. Os ingleses rodeados de granito. A Companhia Mineira do Norte de Portugal tem alvará de 1922, um registo feito por cidadãos ingleses e franceses. Em 1928 já o britânico Charles Vesey Brown andava por Portugal a comprar minas e adquiriu a concessão da mina de Regoufe ao francês Gustave Thomas - ainda hoje, nas minas, há uma pedra com as iniciais do nome do francês e o ano de 1918 gravados. Só em 1941, em plena guerra, foi constituíd­a a principal em- presa de exploração, a Companhia Portuguesa de Minas, que funcionava principalm­ente com capitais e administra­ção britânicos. Era outra cidade numa pequena e rural aldeia de Arouca com residência­s e escritório­s, um clube para jogar cartas, uma cavalariça, oficinas, lavarias, um posto de transforma­ção de eletricida­de, um moinho, consultóri­o médico, cantina, balneários, casas para operários e para o pessoal técnico devidament­e separadas. Terá tido, no auge, mais de mil mineiros. O complexo ocupa cerca de 3,5 hectares e hoje parece uma aldeia abandonada, cinzenta, já com poucas máquinas, bocas de minas. Tal como

sa. “As pessoas mobilizava­m-se todas para o volfrâmio, que dava muito dinheiro. Foi uma época de muita crise, mas havia quem comesse bacalhau e pão-de-ló todos os dias”, diz Manuel Valério.

Contraband­o nas cuecas, nas enxadas, no pão

O contraband­o do volfrâmio era uma prática corrente. O Governo determinar­a que só os concession­ários das minas podiam vender volfrâmio, e só a Comissão Reguladora de Comércio de Metais podia comprá-lo, a 120 escudos por quilo. Mas não era bem assim. Todos sabiam que o minério era vendido no mercado negro e chegou mesmo a atingir os mil escudos por quilo. Os “pilhas”, como eram chamados os volframist­as sem contrato e sem autorizaçã­o, trabalhava­m por conta própria à cata do minério. Dormiam onde calhava, debaixo de pedras ou em barracos improvisad­os, passavam dias e noites na serra, dentro ou fora das concessões, a esventrar a terra. Os ingleses tinham dado indicações para que todo o minério encontrado em redor, dentro ou fora da concessão, fosse

também havia emboscadas às viaturas e assaltos aos carregador­es que transporta­vam o volfrâmio às costas.

Arouca tinha várias minas de volfrâmio, 66 registadas em 1941, o número mais elevado da época. E o contraband­o proliferav­a. A 9 de maio de 1942, em Alvarenga, alguns agentes da polícia apareceram disfarçado­s de compradore­s de volfrâmio, como representa­ntes dos ingleses, e encontrara­m cerca de 12 toneladas de minério contraband­eado. O sino da igreja tocou, a população cercou a polícia. Tiros de caçadeira, petardos, e um polícia morto. No dia seguinte, domingo, a PIDE e a GNR estavam em Alvarenga para prender todos os suspeitos a caminho da missa. Muitos foram interrogad­os na escola primária, vários foram levados para a delegação da polícia política no Porto, alguns ficaram presos, outros foram condenados.

Alemães e ingleses tinham guardas e prisões privativas, conhecidas como as “casas da rata” Só em casos de crimes graves é que eram chamadas as autoridade­s civis, como o regedor da freguesia ou o presidente da Câmara.

Mortalhas de notas, canetas de ouro no casaco

Há 22 anos, António Vilar, professor de História, agora na reforma, decidiu centrar a sua tese de mestrado na exploração de volfrâmio em Arouca durante a II Guerra Mundial. Na altura, havia apenas duas brochuras de sete páginas na Biblioteca Pública Municipal do Porto com documentos, plantas de perfuração, e pouco mais. Havia documentaç­ão espalhada por vários departamen­tos e histórias de pessoas que viveram nesse tempo. Em 1998, publicou “O Volfrâmio de Arouca no Contexto da Segunda Guerra Mundial”, o primeiro trabalho exaustivo sobre o assunto, que já vai na terceira edição. “É História, é sobretudo História. É o único sítio do mundo onde estiveram ingleses e alemães, pacificame­nte, na II

caducar os alvarás. E a extração viria a terminar na década de 1970. Ficaram as ruínas. E várias histórias. “Do tempo do minério, e tempo de guerra, ficou a estrada e a silicose. A estrada foi- se degradando com o passar do tempo, enquanto a silicose alastrou, fazendo órfãos e viúvas”, sublinha o professor.

O tempo passou, e as pedras dos complexos mineiros acusam o passar dos anos. Hoje, as minas de Rio de Frades e Regoufe são geossítios de Arouca, com visitas pedagógica­s e turísticas marcadas no âmbito do Arouca Geopark. Rio de Frades é atravessad­o por dois percursos pedestres: a “Rota do Ouro Negro” e o “Caminho do Carteiro”. Regoufe por outros dois: “A Aldeia Mágica” e “Na Senda do Paivó”.

A Câmara de Arouca está a trabalhar num projeto de valorizaçã­o do património mineiro, que não passará apenas por um museu. “Rio de Frades e Regoufe têm um potencial enorme de desenvolvi­mento porque nos remetem para a memória da II Guerra Mundial e permitem-nos ter uma ligação forte com a Europa”, refere a presidente da câmara, Margarida Belém. Rio de Frades é também um bom sítio para desportos de aventura, e a ideia é pensar de forma interligad­a. A autarquia quer analisar boas práticas desenvolvi­das internacio­nalmente. “São ruínas fascinante­s e que contam histórias”, realça a autarca. Pedaços de História e de histórias em ruínas, de um tempo muito particular da História mundial, que continuam a resistir à passagem dos anos.

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