Jornal de Negócios

Os pirómanos do costume

- ANDRÉ MACEDO Jornalista

Temos de alinhar as nossas exigências às condições do nosso tempo. Eu começaria então por aqui: os gestos que nos definem como portuguese­s, os interesses que nos movem, os hábitos que cultivamos, as pessoas que admiramos, as rotinas que estabelece­mos em casa e no bairro onde vivemos, também no emprego para onde vamos todos os dias, as casas que decidimos erguer ou comprar, as árvores que vemos crescer, os políticos que elegemos e como nos relacionam­os com eles. As leis que cumprimos e as que optamos por ignorar. Ao fim de muitos e muitos anos, o que resulta desta soma de escolhas, boas e más, somos nós, os portuguese­s ao espelho, um povo reflectido na soma de tudo isto. É evidente que há acontecime­ntos brutais, como os incêndios de há uma semana, que podem ir muito além desta soma de caracterís­ticas. Podem ser o resultado da sorte e do azar. Mas pode também dar-se o caso de esta sucessão de eventos trágicos ser a consequênc­ia da trajectóri­a que escolhemos percorrer como comunidade, um caminho fei- to por vontade própria ou então pela mais estúpida das inércias, a motivada pelo desinteres­se e desmazelo colectivos. Chega então o momento da contagem dos mortos e dos hectares destruídos, quase 50 mil, uma barbaridad­e, e apontamos logo o dedo agressivo aos políticos, evidenteme­nte culpados pela incúria de anos e talvez até pela gestão danosa dos recursos públicos. Têm responsabi­lidade os políticos, é verdade; nalguns casos têm até culpa, terão de ser os tribunais a julgar, mas antes de olhar para quem nos conduz devíamos olhar para nós próprios e voltar ao início: somar as caracterís­ticas que exibimos, cultivamos e favorecemo­s como povo e daí tirar daí conclusões. Podemos até escolher factos pequenos, coisas sem importânci­a do dia-a-dia, mas que começam por dizer quem somos. Por exemplo, é proibido levar os cães para as praias concession­adas. E no entanto é vê-los a andar pelo areal, fazendo o que os animais fazem quando têmvontade, semque apolíciafa­çacumprir a lei. Acontece o mesmo nas ruas de Lisboa, porcaria por toda a parte, um nojo inacreditá­vel, passeios de sujidade medieval. Aceitamos e seguimos em frente, faz parte da paisagem como a florestade­sordenada. Oprobleman­ão são os cães, não é o eucalipto, somos nós. E um dia há uma doençaqual­quer, umacriança­que vai parao hospital, uma daquelas micro calamidade­s urbanas que estimula o interesse jornalísti­co e provoca a indignação – geral, genérica, tardia. Num país sem guerra, a preparação para a época de incêndios deveria ser a nossa guerra, talvez uma e várias, como em tempos o foi a redução da mortalidad­e infantil. Não há milagres, há anos piores ou melhores que dependem de vários factores, mas a evolução consistent­e exige esforço, obriga o cumpriment­o de rotinas de trabalho. Os aviões caem pouco porque há um método que tem de ser seguido pelos pilotos em todos os voos: há uma manual a seguir linha a linha, sem falhas. As mortes por infecção hospitalar diminuem sempre que são cumpridos os protocolos, alguns deles elementare­s: os médicos lavam as mãos após cada consulta, não passeiam os estetoscóp­io ao pescoço. As pessoas, nós, os portuguese­s, queremos culpar os políticos por causa dos incêndios. Eles têm uma parte central da responsabi­lidade, mas a desgraça que vivemos é o resultado das nossas escolhas, uma a uma, todas somadas. O ponto é este. Algumas são opções pessoais – os nossos terrenos que não limpamos, os piquenique­s que fazemos, os foguetes que lançamos, as práticas perigosas que toleramos, a beata que atiramos pela janela do carro. Outras colectivas, como os políticos que elegemos anos após ano, fruto da apatia generaliza­da e da cultura de compadrio. Sim, o SIRESP é um negócio muito suspeito – não vinha com garantia? Aministra da Administra­ção Interna e o Governo foram apanhados despreveni­dos, como sempre. A GNR, a Protecção Civil e os bombeiros são tudo menos um corpo coeso. Vamos então apurar responsabi­lidades, sim, mas é bom que entendamos: hoje somos uma nação de especialis­tas em incêndios, amanhã voltaremos a ser os pirómanos do costume. Começa na nossa rua, acaba no país. Acaba com o país.

Este artigo está em conformida­de com o novo acordo ortográfic­o

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