O abandono do interior
Acatástrofe em Pedrógão Grande trouxe de novo o tema do abandono do interior. Conheço bem esse abandono. Cresci no interior, na Beira Interior, na Cova da Beira, duas referências geográficas que só por si realçam a interioridade. Sou testemunha desse abandono, das aldeias que passam a lugares, das vilas que passam a aldeias, das cidades que gerem a sua decadência, das pessoas que saem e já não voltam, do bucólico como fatalidade, do interior como postal turístico ou de Natal. É fácil criticar o poder político por esta desertificação. Arranja-se o bode expiatório, aprovam-se mais uns milhões, jura-se que desta vez é que é. Mas não é assim tão simples, antes fosse. Não houve governo algum que não tivesse políticas para o interior, que não tivesse canalizado fundos parao interior, que não tivesse priorizado o interior nos quadros comunitários. É ir ver os orçamentos, as linhas, os apoios. Ao contrário do que se diz, o interior não desapareceu das preocupações dos governos, de esquerda ou não. Aliás, a maioria dos primeiros-ministros veio de fora das grandes urbes, e quase todos procuraram fazer justiça às suas origens. Não, o interior não foi abandonado pelo poder político: o poder político é que nunca teve políticas eficazes para o interior, o que é algo diferente. De diferente e de muito preocupante, porque significa que não basta abrir a torneira, que não basta canalizar milhões, que não basta distribuir entidades públicas, que o problema é mais fundo. E seria mais produtivo que debatêssemos o que correu mal ou ainda acabamos, à pressa e com peso na consciência, a aprovar mais milhões para o interior para serem gastos no que não interessa ou no que não faz a diferença. E o que é que correu mal? Em primeiro lugar, o critério de avaliação das políticas: os milhões. Tudo se mediu, se comparou, se anunciou com base nos milhões de euros. Os milhões como medida, quem dá mais preocupa-se mais, gosta mais. Umapolítica assente nadespesa. O resultado está à vista, um interior cheio de infraestruturas, com pavilhões e piscinas e centros de congressos e rotundas e pontes e viadutos e sedes associativas. Cheio disso tudo e sem gente. Em segundo lugar, a ausência de monitorização. Há anos que as políticas são as mesmas e há anos que o interior se desertifica. Se um pavilhão não chegou, é porque falta outro. Esta ausência não é apenas política, institucional, é mais funda, é nossa, da academia aos eleitores. Em terceiro lugar, a desresponsabilização autárquica. Não respondendo fiscalmente pelos seus eleitores, desobrigados de fazer repercutir fiscalmente as suas realizações, os autarcas puderam dedicar-se ao que enchia o olho, a obra e o assistencialismo, esquecendo o invisível, o que demora tempo: a competitividade para a captação de investimento e emprego, a especialização inteligente, a aposta nos recursos endógenos, da agricultura ao turismo, a nova industrialização, a cultura como desenvolvimento e não como distribuição por associações. Em quarto lugar, a falta de sindicância, que permitiu a muitos autarcas transformar os seus concelhos em projetos pessoais. Não falo aqui de corrupção, que é outro assunto, mas de prepotência, de falta de alternância, o tal défice democrático, que todos conhecem, mas que não chega aos jornais porque fica lá longe. O poder autárquico é dos menos sindicados politicamente e isso explica muita coisa, perpetuando amadores e más políticas. O interior não é uma fatalidade. Convém é mudar a forma como olhamos para ele: não como destinatário de fundos, depositário de infraestruturas que copiam o litoral, mas como um terreno de oportunidades, que as há.