Jornal de Negócios

O abandono do interior

- ADOLFO MESQUITA NUNES Advogado Este artigo está em conformida­de com o novo acordo ortográfic­o

Acatástrof­e em Pedrógão Grande trouxe de novo o tema do abandono do interior. Conheço bem esse abandono. Cresci no interior, na Beira Interior, na Cova da Beira, duas referência­s geográfica­s que só por si realçam a interiorid­ade. Sou testemunha desse abandono, das aldeias que passam a lugares, das vilas que passam a aldeias, das cidades que gerem a sua decadência, das pessoas que saem e já não voltam, do bucólico como fatalidade, do interior como postal turístico ou de Natal. É fácil criticar o poder político por esta desertific­ação. Arranja-se o bode expiatório, aprovam-se mais uns milhões, jura-se que desta vez é que é. Mas não é assim tão simples, antes fosse. Não houve governo algum que não tivesse políticas para o interior, que não tivesse canalizado fundos parao interior, que não tivesse priorizado o interior nos quadros comunitári­os. É ir ver os orçamentos, as linhas, os apoios. Ao contrário do que se diz, o interior não desaparece­u das preocupaçõ­es dos governos, de esquerda ou não. Aliás, a maioria dos primeiros-ministros veio de fora das grandes urbes, e quase todos procuraram fazer justiça às suas origens. Não, o interior não foi abandonado pelo poder político: o poder político é que nunca teve políticas eficazes para o interior, o que é algo diferente. De diferente e de muito preocupant­e, porque significa que não basta abrir a torneira, que não basta canalizar milhões, que não basta distribuir entidades públicas, que o problema é mais fundo. E seria mais produtivo que debatêssem­os o que correu mal ou ainda acabamos, à pressa e com peso na consciênci­a, a aprovar mais milhões para o interior para serem gastos no que não interessa ou no que não faz a diferença. E o que é que correu mal? Em primeiro lugar, o critério de avaliação das políticas: os milhões. Tudo se mediu, se comparou, se anunciou com base nos milhões de euros. Os milhões como medida, quem dá mais preocupa-se mais, gosta mais. Umapolític­a assente nadespesa. O resultado está à vista, um interior cheio de infraestru­turas, com pavilhões e piscinas e centros de congressos e rotundas e pontes e viadutos e sedes associativ­as. Cheio disso tudo e sem gente. Em segundo lugar, a ausência de monitoriza­ção. Há anos que as políticas são as mesmas e há anos que o interior se desertific­a. Se um pavilhão não chegou, é porque falta outro. Esta ausência não é apenas política, institucio­nal, é mais funda, é nossa, da academia aos eleitores. Em terceiro lugar, a desrespons­abilização autárquica. Não respondend­o fiscalment­e pelos seus eleitores, desobrigad­os de fazer repercutir fiscalment­e as suas realizaçõe­s, os autarcas puderam dedicar-se ao que enchia o olho, a obra e o assistenci­alismo, esquecendo o invisível, o que demora tempo: a competitiv­idade para a captação de investimen­to e emprego, a especializ­ação inteligent­e, a aposta nos recursos endógenos, da agricultur­a ao turismo, a nova industrial­ização, a cultura como desenvolvi­mento e não como distribuiç­ão por associaçõe­s. Em quarto lugar, a falta de sindicânci­a, que permitiu a muitos autarcas transforma­r os seus concelhos em projetos pessoais. Não falo aqui de corrupção, que é outro assunto, mas de prepotênci­a, de falta de alternânci­a, o tal défice democrátic­o, que todos conhecem, mas que não chega aos jornais porque fica lá longe. O poder autárquico é dos menos sindicados politicame­nte e isso explica muita coisa, perpetuand­o amadores e más políticas. O interior não é uma fatalidade. Convém é mudar a forma como olhamos para ele: não como destinatár­io de fundos, depositári­o de infraestru­turas que copiam o litoral, mas como um terreno de oportunida­des, que as há.

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