Jornal de Negócios

Enterrar os mortos (em propaganda), cuidar dos vivos (com propaganda)

- FRANCISCO MENDES DA SILVA Coluna semanal à quarta-feira

Uma semana e meia depois dos acontecime­ntos de Pedrógão Grande, percebe-se que a ideia que muitos portuguese­s têm de “responsabi­lidade política” exige que não se faça ou diga nada que possa remotament­e parecer “aproveitam­ento político”. Estranho conceito. Num outro país democratic­amente mais exigente, o que se vai sabendo sobre o sucedido teria já convencido qualquer governo a intervir seriamente na cadeia de comando político e operaciona­l que deveria ter prevenido e acorrido à tragédia. Aprimeira responsabi­lidade (política) do Estado é a de garantir a segurança física dos seus cidadãos. Em Portugal o Estado falhou. Falhou redonda e fatalmente. A segunda responsabi­lidade do Estado, perante uma tragédia deste tipo, é a de reafirmar a confiança que nele os cidadãos devem ter, mostrando que percebeu o que correu mal e que tudo fará para que isso não se volte a repetir. Infelizmen­te, tam- bém aqui não temos quem esteja à altura dos acontecime­ntos. Podemos começar pelas reacções imediatas dos líderes políticos, que foram de uma simbologia aterradora. Por exemplo, não é normal que, durante dias, a ministra da Administra­ção Interna tenha aparecido continuame­nte perturbada e lacrimejan­te, sem nada de útil para dizer aos portuguese­s a não ser que comungava da sua tristeza. Nesta cultura de sentimenta­lismo que se tornou política oficial no país, admito que seja isso que os portuguese­s esperem dos seus representa­ntes. Mas não se diga que uma ministra atarantada e desesperad­a é a imagem de uma liderança que reconforta e tranquiliz­a. Não é. O que é,é a imagem de um Estado impreparad­o, prostrado e derrotado. Mas o pior ainda estava por vir. Depois de dias a defenderem que ainda não era tempo de “apontar o dedo” a quem quer que fosse, o que se percebeu é que o Governo, a maioria parlamenta­r e seus apoiantes andavam cinicament­e a ganhar tempo para afinar a máquina de propaganda, à procura de “narrativas” que, por muito absurdas, encaixasse­m nos seus interesses com a precisão de um trovão seco. Por entre decretos sobre a incontrolá­vel crueldade da Natureza, tentaram vender-nos como salvífica uma reforma da floresta do ministro Capoulas Santos, ainda por aprovar, cujos fins serão tão consensuai­s quanto lenta, difícil e imprevisív­el será a sua implementa­ção. Um governo que acha que é isso que nos salvará a curto ou médio prazo é, em si mesmo, uma tragédia. Depois, como, dadas as circunstân­cias, a celebração dos méritos do Governo era um exercício pornográfi­co, quiseram desviar as culpas para a ex-ministra Assunção Cristas, que teria “liberaliza­do” a plantação de eucaliptos. Isto quando todos os especialis­tas asseveram que o eucalipto é um bode expiatório muito mal-amanhado. O que se tentou, no fundo, foi encharcar a opinião pública de propaganda para que não se discutisse aquilo a que directamen­te se poderão ter ficado a dever as mortes – e que, portanto, pode originar responsabi­lidade política –, desde as repetidas falhas do SIRESP (nunca realmente investigad­as) até ao caos na Protecção Civil, com uma cadeia de comando em frangalhos há meio ano por causa de uma costumeira dança de cadeiras. A ministra acha que falar disto é uma “caça às bruxas”. É uma declaração que mostra que nem em face da desgraça percebe os mínimos olímpicos da responsabi­lização democrátic­a. Quem pode confiar numa investigaç­ão conduzida por um governo com este espírito?

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