Jornal de Negócios

O outro lado do sonho americano

- FERNANDO SOBRAL

Este livro ajuda-nos a conhecer melhor a vida e os pensamento­s de David Lynch, o criador de “Twin Peaks”. Mas é também um olhar sobre o lado sombrio do “sonho americano”.

uma metáfora dos seus filmes e séries.

“Mulholland Drive”, de 2001, representa muito do seu imaginário negro, repleto de metáforas, de intrigas que parecem sem sentido, de personagen­s perdidas, de imagens distorcida­s. Asua obsessão, diz no livro, é Marilyn Monroe, a mulher atormentad­a. Nisso, nada o separa de Alfred Hitchcock. Tudo é escuro. Como quando rodou o seu primeiro filme, “Eraserhead”: “O filme ‘tinha de ser muito escuro’, diz (Frederick) Elmes, que, para se preparar, passou duas semanas a trabalhar com Cardwell, antes de este ter deixado a produção. ‘Eu e o David víamos o que tínhamos filmado durante o dia e dizíamos: ‘Háum detalhe nesta sombra negra que não devia estar ali. Vamos torná-la mais escura’. Concordámo­s que a atmosfera do filme era o elemento mais importante.”

Desde o início que Lynch queria escurecer o brilho do “sonho americano”, que vira nos anos dourados da década de 1950. Viu o nascer do rock’n’roll e foi estudar arte para uma Filadélfia em mudança na década de 1960. E ali encontrou muito mais motivação para o que circulava na sua mente. Segundo o crítico musical Greil Marcus, o trabalho de Lynch é sobretudo acerca da traição ao “sonho americano”, como se fosse a sombra de uma luz falsa. E tal foi conseguido ao longo dos anos. Juntase a isso a sua lógica transcende­nte que tem muito que ver com a sua devoção à meditação.

Ao longo da obra, seguimos a sua vida, não apenas como criador (na pintura, no cinema, na música). Percebemos melhor o seu universo emocional (quatro casamentos), o que também ajuda a perceber melhor quem é (ou poderá ser) David Lynch. Mas, na realidade, findo o livro, ele continua a ser um grande mistério. E é isso mesmo que ele deseja, escusamos de nos enganar. Como escrevem os dois autores na introdução: “O que aqui se lê é, basicament­e, uma pessoa a ter uma conversa com a sua própria biografia.”

Se o mundo é um mistério por revelar, a obra (e sobretudo a alma) de Lynch é algo ainda mais nebuloso. Este livro, estimulant­e, abre algumas janelas para o seu universo, mas deixa também muitas incertezas a todos nós.

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