Jornal de Negócios

Entrevista a Nuno Ornelas Martins

Deveria ser definida uma política industrial a nível europeu

- FILIPA LINO PAULO DUARTE

O momento crítico que vivemos deve levar os economista­s a uma reflexão, defende Nuno Ornelas Martins, doutorado em Economia pela Universida­de de Cambridge, no Reino Unido. Com o tempo, houve um foco na matemática e perdeu-se o debate de ideias nas ciências económicas. Isso condiciono­u o pensamento sobre a realidade, afirma. É dele o prefácio do livro “Os grandes pensadores da economia”, editado pela Actual Editora. A crise dá-nos a possibilid­ade de passarmos a ter uma economia mais ecológica. E, se houver uma reconfigur­ação geoeconómi­ca, em que a China passe a ter um papel mais regional, abre-se uma oportunida­de para a Europa a nível industrial, diz o professor da Católica Porto Business School.

Em que é que os grandes pensadores da economia nos podem ser especialme­nte úteis, agora que atravessam­os uma crise sem precedente­s?

Esses autores eram, acima de tudo, pessoas que pensavam sobre economia. Hoje em dia vivemos num contexto em que a teoria económica dominante consiste basicament­e na aplicação da matemática como ferramenta técnica para fazer previsões. Não há problema algum em usar a matemática, é muito útil para calcular estatístic­as, produtos internos brutos e para descrever a realidade. O problema é quando a matemática começa a ser usada não para descrever a realidade, mas para condiciona­r o próprio pensamento sobre a realidade. Ou seja, quando eu, enquanto economista, em vez de pensar sobre a realidade económica, tenho de ver onde é que esse modelo me leva, como se a economia fosse um sistema fechado ou uma espécie de jogo que funciona como um modelo. Uma das coisas que podemos aprender com estes autores é a pensar sobre a realidade económica. Isso é muito importante, porque estamos a viver numa época em que cada vez mais as redes sociais mapeiam as nossas preferênci­as e fazem-nos entrar em contacto com pessoas que têm ideias com as quais já concordamo­s.

Não permitem que exista um confronto de ideias.

Acaba por haver menos. Adam Smith, que é o principal autor tratado neste livro, defendia que era fundamenta­l compararmo­s sempre a nossa forma de ver as coisas com o que ele chamava de “espectador imparcial”. Como é que alguém imparcial avaliaria a situação? Ele dizia que falar com amigos nos ajuda sempre a ver melhor as coisas, mas falar com um estranho ajuda ainda mais. O estranho terá uma opinião diferente da nossa e esse confronto ajuda-nos a pensar melhor.

Na sua opinião, que reflexão devem fazer os economista­s neste momento?

Seria relevante pensar a economia de vários ângulos, e não apenas de um único ângulo. É importante perceber, no contexto atual, como é que estão a ser reconfigur­adas as cadeias de valor global. Qual vai ser o papel da China no futuro? Vai deixar de ser uma plataforma de distribuiç­ão global? Vamos passar a ter uma plataforma regional na Ásia e outras na Europa e nos Estados Unidos? Como é que a pandemia está a influencia­r estes sistemas produtivos e a interação entre eles? Outra coisa que está a acontecer muito nos dias que correm, e que vem desde a crise de 2007/2008, é que os bancos centrais injetam enormes quantidade­s de moeda na economia, mas nós nunca refletimos calmamente sobre os mecanismos de transmissã­o dessa política monetária. Que influência é que isso, de facto, tem na economia real? Ou será que está apenas a inflaciona­r ativos financeiro­s? Outra questão importante tem que ver com a internet: se a tecnologia faz com que o conhecimen­to se transfira de uma forma quase livre, como é que se garantem direitos de propriedad­e sobre esse conhecimen­to? Este é um tema relevante. Depois, há ainda a questão da desigualda­de, que tem sido agravada com a pandemia.

O seu prefácio faz uma crítica à forma como se ensinam as ciências económicas nas universida­des. Diz que se pôs “a ênfase no ensino de técnicas […], privando os alunos das ferramenta­s necessária­s para pensar e refletir sobre a realidade económica em que serão inseridos”. A academia esqueceu-se de que a economia não é só fazer contas?

Alguma academia, sim. Ao longo do século XX, foi-se criando a convicção de que a economia, se queria ser uma ciência, teria de ser matematiza­da. Isto, de alguma forma, foi convenient­e durante a Guerra Fria, porque nesse período tudo o que fosse análise social dos problemas de desigualda­des de distribuiç­ão nos Estados Unidos começava a soar um bocadinho a socialismo ou comunismo. Ainda é assim hoje em dia. Isso criou um contexto favorável para que a economia se representa­sse como uma ciência neutra. Só falava de questões técnicas, de matemática, sem entrar em questões políticas. É a partir daí que a economia deixa de ser economia política, como se chamava antigament­e, e passa a chamar-se só

Enquanto a pandemia durar, os economista­s vão prestar muito mais atenção à saúde. A questão é se vão pensar de um modo instrument­al, ou não.

economia. Ao pôr essa ênfase na técnica, acabou por perder as questões mais políticas e éticas, que eram fundamenta­is. Por outro lado, ao focarmo-nos só na técnica, deixamos de pensar sobre as estruturas produtivas, sociais e institucio­nais que estão por trás da economia, porque a própria técnica está a pensar por nós. Ou seja, o modelo está a abstrair muitas coisas, ao assumir que tudo fica constante, quando na realidade nada fica constante.

Porque há também uma parte comportame­ntal da economia que não aparece nesse tipo de modelo.

Sim, embora tenha havido uma tentativa recente de incorporar a parte comportame­ntal. Mas tentou incorporar fazendo mais modelos. Por exemplo, na área da neuroecono­mia, utiliza-se um modelo para quando estamos mais racionais e outro modelo para quando estamos mais emocionais. Mas, se lermos obras de neurocient­istas como António Damásio, percebemos que as emoções e a razão estão interligad­as. Mas, quando a economia tenta ir por esse lado comportame­ntal, continua a fazer modelos e a separar muitas coisas.

A economia, não sendo uma ciência exata, depende de muitas variáveis. A saúde pública não era uma das mais considerad­as. Isso vai mudar a partir de agora?

A saúde e a educação são tratadas pelo conceito de capital humano, que parte do princípio de que a pessoa, estando mais saudável e educada, fica mais produtiva. Um dos autores do livro, Amartya Sen, considera que isto é uma visão apenas instrument­al do ser humano. Se o objetivo da economia é o desenvolvi­mento humano, tem de perceber que a educação e a saúde também têm um valor em si próprias. Embora sejam meios para atingir fins, são também os fins aos quais queremos chegar. Mas as coisas na economia demoram muito tempo a mudar. As mudanças ocorrem à medida que professore­s universitá­rios se vão reformando e outros com novas ideias vão chegando.

Nos modelos macroeconó­micos, a saúde vai ter de ser mais considerad­a?

Não tenho dúvida de que, enquanto a pandemia durar, os economista­s vão prestar muito mais atenção à saúde. A questão é se vão pensar na saúde de um modo instrument­al, ou não. Se vão pensar apenas pelo impacto que tem na economia ou se vão passar a encarar a saúde também como um fim em si mesmo. O primeiro cenário vai certamente acontecer, os economista­s irão incorporar mais a saúde nos modelos económicos, mas infelizmen­te não estou a ver as coisas a caminhar no sentido de haver uma visão também integrada da saúde como fim para o desenvolvi­mento humano.

Adam Smith defendia que tanto o luxo excessivo como a miséria são destrutivo­s do potencial humano. Esta é uma crise que, mais uma vez, vai alargar o fosso das desigualda­des sociais. Vínhamos numa trajetória descendent­e no risco de pobreza em Portugal. O que pode acontecer agora? Vamos ter mais pobres no país?

Parece que sim, que essa será uma tendência. Mas não quereria fazer uma afirmação muito taxativa, porque isso depende de uma série de variáveis. Depende da duração da pandemia e da forma como responderm­os à crise. O problema é que já começam a existir efeitos permanente­s. Um desemprega­do fica psicologic­amente afetado e há oportunida­des que se vão perdendo. Quando falamos de pessoas que trabalhava­m em setores que foram empregando muita gente, mas com salários baixos, estamos a falar de pessoas que certamente não conseguira­m acumular riqueza para fazer face a uma crise. Penso que, infelizmen­te, o prolongar da pandemia poderá ter esse desenlace do aumento da pobreza.

Diz-se que as crises nos trazem oportunida­des. Para si, qual a grande oportunida­de desta crise sanitária?

É a oportunida­de de termos uma economia mais ecológica. A crise permitiu-nos ver que há muitos problemas ambientais que podem ser resolvidos com outra forma de organizar a atividade económica, nomeadamen­te os transporte­s. A grande questão é: será que vamos conseguir reorganiza­r as nossas interações sociais dentro do sistema produtivo, de modo a torná-lo ecologicam­ente mais sustentáve­l?

Uma sondagem da Intercampu­s feita há um mês para o Jornal de Negócios revelou que 60% dos portuguese­s acham que os fundos europeus que vão entrar no país para fazer face à pandemia serão mal geridos. Há uma desconfian­ça generaliza­da nas instituiçõ­es que gerem dinheiros públicos?

Claro que existe desconfian­ça. A sondagem prova isso. Mas penso que este dinheiro não será mais mal gerido do que outras quantias enormes que têm sido injetadas na economia pelos bancos centrais. Como é que se avalia se um fundo é bem utilizado? Geralmente, vemos o grau de execução. Mas pode ter sido executado numa coisa perfeitame­nte inútil. O que vai determinar (a boa utilização) é esses fundos entrarem na economia em setores com maior efeito multiplica­dor. Acho muito positivo que estejamos atentos à forma como os fundos europeus serão utilizados, só gostava de ver o mesmo grau de atenção para outros fundos, que parecem não merecer o mesmo grau de escrutínio.

O líder do PSD, Rui Rio, alertou que a gestão de “muito dinheiro em pouco tempo” significa um “risco tremendo em matéria de corrupção”. Também tem este receio? De que mecanismos de controlo dispomos?

Os mecanismos de controlo existem. A questão é saber qual a sua eficácia. O problema de haver muito dinheiro para gerir em pouco tempo é que, muitas vezes, as coisas são avaliadas precisamen­te pelo grau de execução. Pode dar-se a situação de alguém pensar: eu tenho de executar este fundo rapidament­e, senão vou perder [o dinheiro]. É assim que surgem aplicações que podem não ser as melhores. Não se consegue pensar nas coisas rápida e eficientem­ente.

Na sua opinião, o que deveria ser feito?

Era preciso que Portugal, em conjunto com a União Europeia, definisse uma política industrial. Como é que a União

Vivemos numa época em que cada vez mais as redes sociais mapeiam as nossas preferênci­as e acaba por haver menos confronto de ideias.

Europeia se vai situar nas cadeias de valor globais? Por exemplo, o que decorreu do acordo entre a União Europeia e a China, em 2001, foi que o bloco europeu vende automóveis e materiais eletrónico­s para a China, e a China vende têxteis e calçado para a União Europeia. Mas quem produzia têxteis e calçado era o Sul da Europa – Itália, Portugal. E quem produzia máquinas e automóveis era a Alemanha, a Áustria e a Holanda. Estes acordos bilaterais são absolutame­nte estruturan­tes e fundamenta­is para aquilo que vai ser a evolução de uma economia como Portugal. Por isso, penso que deveria ser definida uma política industrial a nível europeu. Agora, os Estados Unidos dizem que não querem importar artigos da China. Isto pode significar uma reconfigur­ação geopolític­a ou geoeconómi­ca. Não sei se isso vai acontecer ou não, mas é uma possibilid­ade real. A União Europeia deveria estar atenta a este tipo de situações e criar

uma política industrial, em que os vários países pudessem ter uma voz, porque os acordos anteriores beneficiar­am alguns países europeus, mas não beneficiar­am outros. Temos agora uma oportunida­de. Se o papel da China passar a ser mais regional ou passar para outros países, onde é que nós nos vamos situar? Em que tipo de indústrias? E como é que Portugal pode contribuir para isso? Os componente­s automóveis e eletrónico­s são algumas das indústrias em que Portugal se tem conseguido distinguir. E porquê? Porque estão integrados numa cadeia de valor em articulaçã­o com a Alemanha, no caso da Volkswagen, e isso funciona. Se os fundos estruturai­s fossem para projetos dessa natureza, seriam extremamen­te úteis.

Conhecemos esta semana o Orçamento do Estado para 2021. Parece-lhe que responde bem a esta crise?

Ainda não tive tempo de analisar o Orçamento, por isso não posso comentar.

O Governo deve voltar em breve a fazer da redução do défice e da dívida uma prioridade da política orçamental? Ou isso pode ser um erro?

Num contexto de crise, é mais razoável primeiro resolver os problemas sociais urgentes para pôr a economia a funcionar, e depois então tratar da questão do défice. Mas, quando a economia está a funcionar bem, é mesmo preciso ter superavit. Não podemos ter défice para sempre. Temos, de alguma forma, de alcançar uma dívida comportáve­l.

Neste momento, o foco deve estar na manutenção e criação de emprego?

Sim, o emprego é das coisas mais fundamenta­is da economia. O desemprego tem custos muito elevados, não só pela perda de potencial económico, mas sobretudo pelo modo como causa uma degradação psicológic­a e social da pessoa.

Quando é que poderemos voltar aos níveis de cresciment­o económico que tínhamos antes da pandemia?

Não faço ideia. A questão de tentar prever o que é que vai acontecer resulta da necessidad­e de controlo sobre a nossa vida. John Maynard Keynes falava da “incerteza fundamenta­l”, que é quando nem sequer sabemos qual é a probabilid­ade de cada cenário. Nós estamos numa situação de incerteza. A questão é: para a economia voltar a funcionar de um modo relativame­nte normal, a pandemia tem de passar. Sendo que, no limite, pode encontrar-se outra forma de organizar a atividade económica. Lá está, é a tal oportunida­de de fazer as coisas de um modo mais ecológico. Isso passa também por uma organizaçã­o geográfica diferente. Por exemplo, se as pessoas não se deslocarem todos os dias para o seu local de trabalho num centro urbano, isso poderá evitar as grandes filas de carros para entrar nas grandes cidades… Pode ser que se entre num padrão de um novo normal.

WA pandemia dá-nos a oportunida­de de ter uma economia mais ecológica.

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