Jornal de Negócios

Vargas Llosa regressa ao “backyard” dos Estados Unidos

No seu novo livro, o Nobel peruano reassume a pele de escritor continenta­l (sul-americano). É a história romanceada da famosa ingerência americana na Guatemala, com a ajuda de uma multinacio­nal de bananas.

- MARCO ALVES

Oromance histórico e político não é uma novidade em Vargas Llosa. A bem da verdade, romance, romance terá escrito “Travessura­s da menina má” (2006) e pouco mais. O seu novo livro é a “reconstitu­ição” do golpe de Estado na Guatemala em 1954 e vem no seguimento de outros livros do género. Por exemplo, “A guerra do fim do mundo” (1981), sobre a Guerra de Canudos, ocorrida em 1896-97 no Brasil. Ou “A festa do chibo” (2000), sobre o ditador Trujillo, da República Dominicana. Ou “O sonho do celta” (2010), sobre Roger Casement, diplomata que denunciou as atrocidade­s no Congo Belga.

“Tempos duros” é baseado numa história extraordin­ária, de tal forma que muitas vezes parece estarmos na presença de um livro de não ficção, com um estilo de escrita próximo do ensaio. É um bom livro do último Nobel sul-americano – será até o melhor que escreveu depois de receber o prémio, em 2010.

As primeiras personagen­s são dois descendent­es de emigrantes judeus nos Estados Unidos: Edward L. Bernays e Sam Zemurray. Bernays era uma espécie de um novo fenómeno chamado relações públicas, ou propaganda (mas no sentido que hoje entendemos por “lobby”). Encontrara­m-se pela primeira vez em 1948, quando Zemurray lhe pediu ajuda. “Dirijo uma empresa que traz bananas da América Central para os Estados Unidos”. Era a United Fruit, companhia com longo historial e cadastro no continente. Zemurray queria limpar a imagem da empresa.

A Guatemala entra na história aquando do governo de Juan José Arévalo (cuja vida pessoal, Vargas Llosa também vai romancear no livro), entre 1945-1950. Era um governo de forte pendor reformador e progressis­ta (salário mínimo, voto universal, sindicatos, reforma agrária, etc.). Arévalo queria fazer do pequeno país uma democracia moderna, mas isso tornou-se uma ameaça ao livre usufruto que a United Fruit fazia dos seus trabalhado­res.

De uma reunião da United Fruit saiu a decisão bizarra de fazer uma nova campanha de “lobby”, desta vez não para limpar a imagem da empresa, mas para plantar nos EUA a ideia de que havia um problema grave na Guatemala, país que nem sequer sabiam que existia. O problema era “vermelho”: a Guatemala tinha sido tomada pelos comunistas da União Soviética. Seguindo esta lógica, e num contexto de Guerra Fria, o perigo de alastramen­to comunista pelo subcontine­nte era real e tinha de ser parado. Mesmo que Juan José Arévalo não tivesse nada com o comunismo, assim como o seu sucessor, Jacobo Árbenz.

Extraordin­ariamente, a ideia bizarra seria concretiza­da. Em 1952, a CIA patrocinou nos bastidores um primeiro golpe de Estado. Em 1954, o segundo golpe deporia Jacobo Árbenz e todo o resto do século XX da Guatemala foi passado em ditaduras militares e guerras civis.

“TEMPOS DUROS” É BASEADO NUMA HISTÓRIA EXTRAORDIN­ÁRIA, DE TAL FORMA QUE MUITAS VEZES PARECE ESTARMOS NA PRESENÇA DE UM LIVRO DE NÃO FICÇÃO, COM UM ESTILO DE ESCRITA PRÓXIMO DO ENSAIO.

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Mario Vargas Llosa romanceia as personagen­s do golpe militar de 1954 na Guatemala. Javier Lopez
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MARIO VARGAS LLOSA Tempos Duros Quetzal, 371 páginas, 2020

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