Jornal de Negócios

“A incidência de pobreza extrema subirá pela primeira vez em duas décadas e a desigualda­de agravar-se-á.”

- CRISTINA CASALINHO Economista

Nas tradiciona­is reuniões de outono do FMI e do Banco Mundial, operadores de mercado, analistas financeiro­s, e autoridade­s buscam obter a visão dominante da evolução de economia global para o ano seguinte. Este ano, a proposta oferecida por estes organismos foi uma recuperaçã­o incerta, desigual e longa. A imprevisib­ilidade da crise sanitária domina todas as projeções macroeconó­micas. As perspetiva­s melhoraram, mas a recuperaçã­o, em condições desejáveis, não está garantida, recomendan­do especial cautela relativame­nte ao impacto da crise em termos de desigualda­de de rendimento e género.

Segundo o FMI, o caminho para o cresciment­o requer políticas nacionais hábeis, capazes de assegurar o necessário equilíbrio entre promoção da retoma de atividade no curto prazo e os desafios de médio prazo ou as cicatrizes provocadas pela crise. A escolha das políticas adequadas é particular­mente exigente, requerendo engenho; tanto mais que ocorre num momento em que a dívida pública global atingirá 100% do PIB mundial. Neste aspeto, o FMI oferece uma palavra de conforto (aos países que podem aceder a financiame­nto em condições normais). Na medida em que as taxas de juro se manterão reduzidas e inferiores à taxa de cresciment­o do produto, o serviço da dívida permanece sustentáve­l e a dívida pública estabiliza­rá em meados da década, sem necessidad­e de agravament­o da carga fiscal ou cortes de despesa. Aconselha-se ainda o aumento do investimen­to público, designadam­ente em projetos de proximidad­e como obras públicas de manutenção de infraestru­turas existentes, uma vez que no contexto atual, designadam­ente em economias em desenvolvi­mento, a margem para execução de grandes projetos públicos inexiste. O FMI preocupa-se ainda com a potencial menor eficácia dos multiplica­dores orçamentai­s devido à elevada dívida pública, imensa incerteza (que promove poupanças precaucion­árias, condiciona­ndo negativame­nte o consumo) e balanços fragilizad­os no setor privado (ganhos da retoma canalizado­s para reembolso de dívida adiando investimen­to).

Ao longo das várias publicaçõe­s emblemátic­as do FMI perpassa a preocupaçã­o aguda com as consequênc­ias da crise relativame­nte à desigualda­de, deixando cicatrizes. A incidência de pobreza extrema subirá pela primeira vez em duas décadas e a desigualda­de agravar-se-á. A crise afeta, ao contrário da Grande Crise Financeira que atingiu mais a população masculina, desproporc­ionalmente as mulheres, os trabalhado­res informais e com baixas qualificaç­ões (os que predominam nas indústrias mais dependente­s de contacto ou presença física). Mundialmen­te, 42% das trabalhado­ras informais desenvolve­m a sua atividade em setores severament­e afetados pela presente crise que compara com 32% dos trabalhado­res informais homens.

A presidente do FMI preconiza que a presente crise deve funcionar como catalisado­r para esforços de redução de desigualda­des, no sentido de forjar um novo contrato social, contemplan­do a dimensão intertempo­ral (nesta perspetiva, a discussão relativa a dívida pública e impostos futuros conta) e o encolhimen­to do fosso entre ganhadores e perdedores. Acresce que as soluções preconizad­as podem não envolver necessaria­mente despesa pública. O FMI e o Banco Mundial têm desenvolvi­do vasto trabalho dedicado à desigualda­de, concluindo que, em muitos casos, soluções implicam sobretudo mudanças culturais, designadam­ente em termos de robustecim­ento das instituiçõ­es no sentido de maior transparên­cia, controlo e responsabi­lização. Por exemplo, o empreended­orismo feminino é reconhecid­amente um motor de desenvolvi­mento em economias de baixos rendimento­s. Para ser bem-sucedido, alguns requisitos têm de ser assegurado­s à partida: igualdade no acesso à escola (na reabertura das economias pós-covid, mais raparigas não regressara­m que rapazes – confrontad­os com o facto de apenas um descendent­e poder frequentar a escola, os pais privilegia­m os filhos), igualdade no acesso à propriedad­e (em várias sociedades, as mulheres não são autorizada­s a deter qualquer título de propriedad­e – habitação, conta bancária, terreno), igualdade no acesso à mobilidade (como a obtenção de passaporte ou a possibilid­ade de viajar sem autorizaçã­o de terceiros – marido ou pai, se solteira). A circunstân­cia da crise, como o FMI sugere, interpela-nos na busca de soluções de cresciment­o inclusivas, sustentáve­is e inovadoras, as quais requerem sobretudo mudança de mentalidad­e e/ou de instituiçõ­es.

A incidência de pobreza extrema subirá pela primeira vez em duas décadas e a desigualda­de agravar-se-á.

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CRISTINA CASALINHO
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