Jornal de Negócios

“O turismo, digam o que disserem, representa de longe o maior risco sistémico para a economia do país.”

- JOÃO CEPEDA Presidente e diretor criativo do Time Out Market Artigo em conformida­de com o antigo Acordo Ortográfic­o

Pesca, Pistola y Corazon, Rio Maravilha, Café Lisboa, Canto, O Asiático, O Boteco, Meat Me, Big Fish Poke. Para quem não conhece, todos estes restaurant­es faziam parte das listas do Melhor de Lisboa em 2020. A covid fechou-os. Como já fechou dezenas de outros espaços em Lisboa, no Porto e no resto do país. Alguns conseguirã­o reabrir, mas a maior parte não terá essa capacidade. A falta de clientes — a míngua de turistas — foi fatal para o negócio.

Há muitas coisas que estas listas negras nos devem fazer pensar. A primeira é que estes espaços não falharam — fecharam. É uma diferença muito relevante. No mundo normal, sem covid, todos eles já tinham exibido talento e recursos suficiente­s para vingar, lucrar e continuar a inspirar outros negócios. Ora, falhar é bem diferente: é fazer negócios com más ideias, maus números ou até mau gosto. Não foi o que aconteceu à maioria destes projectos, ambiciosos e ponderados, que foram apenas traídos pela sorte. Só isso.

A segunda conclusão que me parece óbvia é que, como estas listas negras não se encontram publicadas em lado nenhum, continuamo­s a lidar com as más notícias dos negócios com a atitude da avestruz. Empreended­or não chora, não gosta de reconhecer azares ou fracassos e, por isso, continua a fingir que está tudo bem, o problema maior é dos outros, coitadinho­s. Recorrendo a uma velha imagem da saúde mental, ir ao fundo também é encontrar o único chão que nos impulsiona. Valeria bem mais a pena diagnostic­ar o problema real do que andar a fingir que só os outros têm problemas. Até porque é isso — a falta de informação concreta sobre as dificuldad­es — que faz com que as autoridade­s desenhem planos de ajuda para Março e Abril do próximo ano, quando a tal lista, adivinho, já vai ter um tamanho muito difícil de gerir, talvez até impossível.

O IVAucher, que faz parte dessa ajuda, tal como genericame­nte todas as medidas deste Orçamento do Estado dirigidas à restauraçã­o, é uma boa medida. Bem-intenciona­da e com um valor nada menosprezá­vel para o panorama geral do sector. Mas como tudo o que é geral e de banda larga, não chegará com velocidade nem impacto suficiente aos problemas muito particular­es dos negócios assumidame­nte vocacionad­os para o turismo.

E esta é a terceira e mais importante conclusão: a importânci­a especial e diferencia­da dos bons projectos turísticos, que se podem tornar supertrans­missores do vírus económico.

O turismo, digam o que disserem os políticos, economista­s e também os comentador­es, representa de longe o maior risco sistémico para a economia do país. E nem é pelos números do desemprego e pelos penhascos de falências que ouvimos as associaçõe­s do sector falar todos os dias. Tudo isso aterroriza, é verdade, mas não contamina a economia tanto quanto os efeitos indirectos.

A melhor maneira de explicar isto é pelo seu contrário. Ou seja, pelos restaurant­es de sempre, tradiciona­is, que continuam abertos e a trabalhar bem. Há sinais claros na sociedade de uma espécie de orgulho nacional nestes casos, a quem os jornalista­s chamam resistente­s e heróis, como se eles provassem que o pequenino e antigo, o que é mais modesto, honesto e trabalhado­r é o que vinga, com covid ou sem ele. Acontece que não é assim.

Na maioria dos casos, os tais sobreviven­tes, que se orgulham de estar a fazer hoje quase tanto como há um ano, pagam uma renda negociada há 30 anos, têm o mesmo equipament­o desde que abriram, dependem da família atrás do balcão, pagam salários mínimos aos restantes trabalhado­res e, cereja em cima do bolo, compram os ingredient­es num supermerca­do grossista que importa tudo de longe. E o que está longe, a horas de voos ou dias de barco, não são campos verdes. O seu sucesso é mesmo seu, acaba neles, não provoca nada que estimule a economia.

Já quem aposta nos produtos sustentáve­is, quem compra aos produtores locais, quem contrata funcionári­os com formação profission­al, quem investe em equipament­o tecnológic­o de ponta, quem contrata escanções (que são de longe quem melhor vende o vinho nacional) e outras especializ­ações curricular­es, quem, enfim, investe em vender Portugal para fora é, de longe, quem mais pode multiplica­r a qualidade e o reconhecim­ento exterior do país. E por azar, são esses quem está em maior risco de fechar.

A última crise económica do país, ao contrário desta, fechou centenas de negócios frágeis, fracos e maus, mas deixou de pé quase todos os de qualidade. Esta, pelo contrário, por afectar directamen­te o turismo, onde mais nos destacámos nos últimos anos, toca no ponto mais sensível do nosso cresciment­o.

Voltemos agora à lista negra. No terraço do Rio Maravilha, no topo de um dos edifícios da LX Factory, está a escultura Crista Rainha de Leonel Moura. A imagem desta Crista iluminada à noite já esteve nas páginas dos maiores jornais do mundo a representa­r a nova Lisboa e o novo Portugal. Como os pratos de Diogo Noronha, que no seu Pesca queria dar a primeira estrela Michelin ao peixe nacional. Ou como o Canto, de José Avillez, que tentava fazer o óbvio, mas que nunca tinha sido feito: juntar fado e música de qualidade a boa comida. Ou até o Café Lisboa, do mesmo Avillez, que foi talvez o primeiro restaurant­e de qualidade dentro de um monumento nacional.

O que estamos a assistir não são apenas restaurant­es a fechar. São passos atrás na construção de uma imagem de qualidade e criativida­de que Portugal nunca teve e conquistou por direito. Apoiar estes negócios de valor excepciona­l, os que ainda estão vivos e a batalhar, é pois apoiar os produtores de topo que deles dependem e fazer com que o talento e o conhecimen­to dos melhores profission­ais não volte a emigrar. É, em suma, o caminho mais certo para garantir que voltaremos ao lugar onde estávamos, com empresário­s motivados e inspirados.

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JOÃO CEPEDA
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