A privacidade digital (e não só)
Quem costume ler os meus artigos, seja por gosto, seja por curiosidade, seja por dever de ofício, já terá dado por algumas referências minhas ao tema da privacidade digital. Essa matéria será cada vez mais relevante na vida dos seres humanos. Em Portugal, a questão surge agora, de algum modo, a propósito do anúncio feito pelo Governo da obrigatoriedade de instalação, nos nossos telemóveis, de uma aplicação de controlo da covid.
Com pandemia ou sem ela, com a evolução tecnológica já existente, o controlo dos nossos dados e dos nossos passos é cada vez mais absoluto. Já era muito grande e, com o blockchain, entre outros instrumentos, cada vez mais tudo será conhecido, centralizado, analisado e utilizado, sempre com a invocação do respeito formal das garantias individuais e fazendo-se cada vez mais regulamentos, diretivas, leis e decretos sobre a proteção de dados de todos e de cada um.
Tudo isto se passa num tempo em que se debate se os fins justificam os meios, como, por exemplo, no caso de invasão dos aparelhos ou redes informáticas de indivíduos, empresas e outras entidades, justificadas com o propósito, verdadeiro ou não da denúncia de atividades criminosas. Ou seja, aquilo que antes as polícias só podiam fazer com autorização de um juiz, passará a poder ser feito por qualquer pessoa, sem qualquer tipo de mandato. E faz-se a questão: será admissível, daqui em diante, alguém invadir alguma rede por suspeitar de crime, depois nada se confirmar, mas ser perdoada a intrusão porque a intenção era boa? Tem-se lido e ouvido muita dissertação sobre o que é um pirata informático e o que é um denunciante. Não se consagrou, até agora, a delação premiada, mas está-se a caminho de aceitar a denúncia “bem-intencionada”. Tínhamos antes a contradição absoluta entre os imperativos legais a propósito do segredo de justiça e a realidade da sua constante violação. Com a evolução tecnológica, essas contradições, esses dilemas, essas dificuldades, cada vez mais se vão pôr aos poderes públicos e aos cidadãos. Nos tempos de hoje, e nos que aí vêm, é cada vez mais inconcebível que um partido, uma eleição, uma sociedade, não tenham estas matérias como prioritárias nos seus programas e nas suas agendas. O mundo está em mudança vertiginosa e importa ter envergadura para lidar com ela e, tanto quanto possível, liderar os acontecimentos. Talvez seja mais realista falar, em vez de os liderarmos, em não nos deixarmos só comandar por eles. Há que agir, que prevenir, que criar para salvaguardar a privacidade digital e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias. Mas, não tenhamos ilusões: o conteúdo e os limites desse respeito nunca mais serão os mesmos.