Jornal de Negócios

O Brexit deu uma voz aos racistas

- A partir de uma conversa com LÚCIA CRESPO MIGUEL BALTAZAR

Tem 29 anos, toca nos Incognito, banda britânica de acid jazz, e lançou recentemen­te o seu segundo disco a solo, “Miles Away”, uma viagem acústica sobre as viagens que fez com o grupo de Jean-Paul “Bluey” Maunick. O guitarrist­a Francisco Sales nasceu em Penalva do Castelo, vila de Viseu, cresceu a ouvir Pink Floyd e a assistir aos ensaios de música do pai e dos tios. Às sextas-feiras, o pequeno compositor juntava-se aos elementos da banda de garagem, improvisav­a uma guitarra de madeira e imitava David Gilmour, “o guitarrist­a que mudou o mundo da guitarra com os pedais”. Às influência­s pop e rock, juntou o estudo do jazz na Escola Superior de Música de Lisboa e, depois de experiênci­as em bandas de “covers”, aventurou-se por Londres, onde conheceu o mítico Bluey e acabou por integrar os Incognito. Em dois anos, o mundo dele deu mil e uma voltas e ele deu muitas voltas pelo mundo e é dessas voltas que resulta este seu “Miles Away”.

Nasci e cresci em Penalva do Castelo, uma bela vila de Viseu, a ouvir Pink Floyd. O meu pai e os meus tios passavam o tempo a ouvi-los e eu conhecia todos os discos de trás para a frente e de frente para trás. Adoro o David Gilmour, o guitarrist­a que mudou o mundo da guitarra com os pedais, e tive a sorte de nascer com uma guitarra em casa. O meu pai e os meus tios tinham um projecto musical e eu assistia aos ensaios deles todas as sextas-feiras, o dia em que tinha de comer peixe… O peixe vinha fresquinho de manhã e diziam-me: se não comeres, não vais ao ensaio, e então eu comia. Os ensaios, na cave lá de casa, eram o ponto auge da semana, lembro-me de pegar num bocado de madeira e de ficar a imitá-los. Teria uns sete anos quando o meu pai decidiu ensinar-me dois ou três acordes na guitarra e, já na altura, o meu ímpeto não era tocar uma música de alguém, mas fazer uma composição qualquer. O que realmente me dá gozo é criar, é deixar uma marca… Eu andava sempre com a guitarra às costas, levava-a para a escola, o meu pai refilava, queria que me concentras­se nos estudos, mas a minha cabeça estava sempre na guitarra. A malta saía da escola e ia jogar à bola e eu ia para casa tocar ou compor. A música foi sempre a minha maior companhia, foi sempre o meu ioga. Cheguei a passar pelo Conservató­rio, mas foi numa fase em que não estava a abraçar muito o estilo clássico e acabei por não dar continuida­de. Não tenho nada contra o clássico, mas cresci a ouvir Pink Floyd, Supertramp, Gary Moore, Dire Straits, e eu queria uma coisa com mais atitude. Na minha adolescênc­ia, percebi que, para poder continuar na música, precisava de alguém que me abrisse horizontes e comecei a ir às “jam sessions” da ESMAE, no Porto. Foi aí que o jazz apareceu na minha vida. Percebi que o jazz iria dar-me o vocabulári­o que faltava para encontrar a minha música. A minha influência vinha toda do rock e do pop, eu sabia que não iria ser músico de jazz, sabia que não era aquele o estilo que dominava a minha alma, mas era o estilo que me iria dar as ferramenta­s que precisava. Numa das “jam sessions”, fui ter com o guitarrist­a Nuno Ferreira e disse-lhe: por favor, ensina-me. Aprendi com ele e com o guitarrist­a Luís Lapa. Eles deram-me força e motivação para depois entrar na licenciatu­ra de jazz em Lisboa.

Fui para Londres com uma guitarra às costas, meia dúzia de trocos e muita ambição, eu queria realizar sonhos. Lembro-me de estar em Lisboa a ver o canal MEZZO, onde passam os maiores festivais de jazz do mundo, como o Java Jazz Festival e o Montreux, e pen-

sar no quão bom seria poder um dia tocar ali. Eu tinha esses sonhos… Quando saí de Portugal, contactei o João Caetano, português natural de Macau, que é percussion­ista dos Incognito. Ele estava à procura de alguém que o ajudasse a co-produzir um EP, abracei esse convite e, durante um ano, estive a trabalhar nesse projecto. Ao mesmo tempo, ele levava-me às sessões dos Incognito e tive oportunida­de de conhecer o Bluey, o mentor da banda, que me acolheu muito bem. Eu nem acreditava no que estava a acontecer. Quando estamos sozinhos e fora da nossa zona de conforto, fazemos coisas que não faríamos sentados no sofá da nossa casa. Quando precisamos mesmo que as coisas aconteçam, arranjamos a confiança que, à partida, não teríamos. Decidi reunir todas as músicas compostas por mim e aquilo que, inicialmen­te, seria apenas um cartão-de-visita transformo­u-se num disco (“Valedictio­n”), gravado no estúdio do Bluey. Ele quis ajudar-me ao máximo e eu abri muitos concertos dos Incognito com a minha música. Entretanto, ele descobriu o meu talento para a guitarra eléctrica e, de certa forma, achou que seria importante incluí-la na banda e convidou-me para inte- grar os Incognito. Lembro-me de fazer uma “tour” com a Chaka Khan, a diva dos Estados Unidos, e de não conseguir acreditar que tudo aquilo estava a acontecer de uma forma tão rápida, foi mesmo um chapadão. Nestes dois anos, passei o tempo a andar de avião de um lado para o outro com os Incognito e é dessas viagens que surge o álbum “Miles Away”. Eu sentia-me “miles away” fisicament­e mas, acima de tudo, mentalment­e. Depois dessas viagens, chegava a casa, pegava na guitarra e ficava a compor músicas sobre as coisas que me tinham acontecido. O disco começa com uma viagem que fiz a St. Moritz, um sítio lindíssimo na Suíça, onde o nosso camarim ficava no topo da montanha, foi uma visão arrebatado­ra, e no dia a seguir fomos para a Hungria. Quando cheguei a minha casa, peguei na guitarra e compus um tema dedicado a esses dois sítios, e assim sucessivam­ente, ia escrevendo músicas depois de conhecer algum sítio novo. Uma das músicas chama-se “Tokyo”, claro. Aconselhar­ia qualquer pessoa do mundo a visitar o Japão pelo menos uma vez na vida. É verdade que Tóquio é gigante mas, provavelme­nte, é a única grande cidade do mundo onde as pessoas não vivem no stress em que nós vivemos. Ali, encontramo­s paz em cada esquina. Quando atravessam­os a passadeira, em vez de ouvirmos um apito muito alto, ouvimos sons de passarinho­s.

Os meus planos passam por focar-me na minha carreira a solo. O meu tempo livre é sempre dedicado ao meu projecto pessoal, quero que a minha música chegue o mais possível às pessoas, mas levará o seu tempo, e um dia até quero voltar para Portugal. Londres é, para mim, uma fase. Portugal é o meu ponto de partida, é um sítio que me inspira muito e do qual sinto alguma falta. Sinto falta, acima de tudo, da calma que se vive, sinto falta das ligações que criei aqui, dos amigos, da família. Para já, continuo a morar em Londres. Estava lá no “dia do Brexit” e não esperava aquele resultado, o mundo só tem a ganhar com a multicultu­ralidade e Londres é o que é porque existe essa multicultu­ralidade. Mas, apesar de ser uma cidade de várias culturas, existem sempre pessoas xenófobas e racistas que, a partir do Brexit, começaram a ganhar uma certa voz e sentiram-se mais à vontade para a mostrar. Na verdade, o Brexit deu uma voz aos racistas.

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