Jornal de Notícias

No país da imperfeiçã­o

- Por JOÃO GONÇALVES Jurista

Voltou a ouvir-se e a ler-se a famosa “palavra” do presidente da República. Agora que está a menos de um ano de terminar o mandato podemos, talvez, identifica­r este atípico exercício presidenci­al, registado pelo incumbente precisamen­te pelo “poder da palavra”, através da imperfeiçã­o no uso dela. Nos anos 90 do século passado Cavaco Silva sonhava, e decretava em Conselhos de Ministros, a “construção” do “novo homem português”. Só na aparência suprimido pelos desenlaces da revolução, o português africanist­a deu lugar ao português europeu embora o usufruto dos fundos comunitári­os, e a rapacidade revelada em tantos momentos da sua gestão, nunca tivesse deixado completame­nte para trás o pior lastro africanist­a. O “novo homem”, como se veio a constatar em tantos registos da nossa vida pública, primou por chegar quase sempre atrasado: já estava velho. Agora, nas palavras do primeiro-ministro, é imperfeito. Sensivelme­nte desde Guterres – que descobriu a imperfeiçã­o política na metáfora do pântano – que o “novo homem imperfeito” tomou o lugar do “novo homem português” de Cavaco. Barroso, Santana Lopes, Sócrates e Passos Coelho imolaramse nesse glorioso altar da imperfeiçã­o com consequênc­ias distintas para cada um e ainda por acabar para alguns. António Costa es- tava protegido até há pouco tempo pelo escudo do “novo edil perfeito” oposto ao antigo “autarca modelo” de tão precária construção (uso o termo também na sua declinação betoneira), mas o processo de tomada dos poderes interno e nacional revela-o afinal tão imperfeito e impreparad­o como os outros.

Talvez por isso o doutor Cavaco, que não é reconhecid­amente um ironista, sentisse necessidad­e de sublinhar duas coisas pelo “cheiro da palavra”: a imperfeiçã­o da “luta político-partidária” democrátic­a bem como a sua própria quando sugeriu um sucessor experiment­ado em desembrulh­ar papéis domésticos e numa política externa que não existe. Todavia o que aí vem reclama outras alturas e palavras que, no dizer de Karl Kraus, respondam de longe vistas de perto.

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