No país da imperfeição
Voltou a ouvir-se e a ler-se a famosa “palavra” do presidente da República. Agora que está a menos de um ano de terminar o mandato podemos, talvez, identificar este atípico exercício presidencial, registado pelo incumbente precisamente pelo “poder da palavra”, através da imperfeição no uso dela. Nos anos 90 do século passado Cavaco Silva sonhava, e decretava em Conselhos de Ministros, a “construção” do “novo homem português”. Só na aparência suprimido pelos desenlaces da revolução, o português africanista deu lugar ao português europeu embora o usufruto dos fundos comunitários, e a rapacidade revelada em tantos momentos da sua gestão, nunca tivesse deixado completamente para trás o pior lastro africanista. O “novo homem”, como se veio a constatar em tantos registos da nossa vida pública, primou por chegar quase sempre atrasado: já estava velho. Agora, nas palavras do primeiro-ministro, é imperfeito. Sensivelmente desde Guterres – que descobriu a imperfeição política na metáfora do pântano – que o “novo homem imperfeito” tomou o lugar do “novo homem português” de Cavaco. Barroso, Santana Lopes, Sócrates e Passos Coelho imolaramse nesse glorioso altar da imperfeição com consequências distintas para cada um e ainda por acabar para alguns. António Costa es- tava protegido até há pouco tempo pelo escudo do “novo edil perfeito” oposto ao antigo “autarca modelo” de tão precária construção (uso o termo também na sua declinação betoneira), mas o processo de tomada dos poderes interno e nacional revela-o afinal tão imperfeito e impreparado como os outros.
Talvez por isso o doutor Cavaco, que não é reconhecidamente um ironista, sentisse necessidade de sublinhar duas coisas pelo “cheiro da palavra”: a imperfeição da “luta político-partidária” democrática bem como a sua própria quando sugeriu um sucessor experimentado em desembrulhar papéis domésticos e numa política externa que não existe. Todavia o que aí vem reclama outras alturas e palavras que, no dizer de Karl Kraus, respondam de longe vistas de perto.