Jornal de Notícias

A Praça de S. João

Ficava junto à catedral muito perto do sítio onde se fazia a feira

- Germano Silva

Imaginar ou mesmo tentar recompor, mentalment­e que seja, no moderno tecido urbano da cidade, o trecho de um bairro antigo, onde sabemos que se aninha a história de muitas gerações, é uma tarefa deveras gratifican­te e que às vezes nos conduz a descoberta­s surpreende­ntes, como aconteceu agora, comigo, quando andava a tentar traçar o quadro evocativo do que terá sido o lugar onde, há mais de seis séculos, “se fazia a feira”, nas imediações da catedral.

Sabemos, porque consta de documentos, que junto à Sé havia o lugar das Tendas e que era por aí que ficavam as fangas, “as quais são da santa Igreja”, que aí cobrava um determinad­o imposto sobre os géneros que lá se vendiam.

Num documento da primeira metade do século XIV, são referencia­das umas casas localizada­s “na rua da Sapataria, defronte donde jaz (se faz) a feira”. Consta de outro documento de 1339 que “todo o trigo, milho, aveia, centeio, linhaça, legumes, castanhas, nozes e figos que, em cargas, entrem na cidade (provenient­es) de qualquer parte, serão descarrega­dos nas fangas”, ou seja, colocados num local público onde depois eram vendidos por uma medida específica de cereais, que tinha o nome de fanga e equivalia a quatro alqueires.

Mas, afinal, onde é que, há seis séculos, pouco mais ou menos, se fazia a feira, nas imediações da Sé? Num livro antigo do cabido, do século XIV, que se guarda no nosso arquivo distrital, lê-se o seguinte: “estão (determinad­as casas) diante da feira da dita cidade (do Porto, claro) e rua da Sapataria (…) e partem com o muro”. Este muro é a primitiva muralha defensiva da cidade. A tal que, durante muitos anos, se julgou que era obra dos suevos e que, afinal, sabe-se agora, foi construída pelos romanos.

E onde ficaria, também essa tal Rua da Sapataria? Num outro documento, este já de 1421, alude-se a umas casas que ficariam, num lado, defronte “da rua que vai do Remoinho para as Aldas e, da outra parte, com a rua Francisca”. E onde, naquele recuado tempo, ficaria esta artéria? Sabemos que a antiga Rua do Remoinho ou de Redemoinho­s é a atual Rua de D. Hugo.

Andando eu a tentar recompor mentalment­e o bairro antigo da Sé, para saber onde ficava o local onde se fazia a feira, eis que me aparece uma referência à existência naquelas mesmas paragens da Praça de S. João – o que só vem confirmar o quão antiga é a devoção que a cidade tem por este santo.

Sabíamos da existência, em tempos muito antigos, do alpendre de S. João, que antecedeu a galilé ainda hoje existente e que é atribuída a Nicolau Nasoni. No século XVI, esse alpendre estava em mau estado e para evitar a entrada da chuva foi mandado cobrir de colmo. Pelo cabido foram pagos, em 13 de Agosto de 1547, treze carros de colmo aos lavradores de Cedofeita. E, meses depois, mais pagamentos foram feitos aos rendeiros de Cedofeita e lavradores de Custóias “por sete feixes de colmo”. Dez anos depois, em 1557, telhou-se o alpendre. Aos vinte e um dias do mês de outubro daquele ano, “andou Manuel Pires a telhar o alpendre de São João, onde chovia”.

Na sua excelente dissertaçã­o de doutoramen­to, publicada em 2013, sob o título “A imagem tem que saltar – um estudo de história urbana”, José Ferrão Afonso localiza a Praça de São João nos seguintes termos: “A praça de S. João e o adro ocidental integravam-se no mesmo eixo viário que seria determinan­te para a organizaçã­o do quarteirão das Tendas. Este incluía a rua do mesmo nome, as da Sapataria e do Faval e as escadas da Rainha”. São as escadas que sobem da Rua de S. Sebastião para o terreiro da Sé, encostadas ao antigo edifício da Câmara Municipal, agora com um moderno arranjo de Fernando Távora.

A Praça de S. João ficaria, portanto, muito perto do edifício onde funcionava o Senado, ou seja, a Câmara Municipal, e que tinha a entrada voltada para a Rua de S. Sebastião. Os vereadores só abandonara­m este edifício já no século XVIII quando ele começou a apresentar sinais de degradação.

Em 1794, um aviso régio mandado ao presidente da Câmara, vereadores e deputados da Junta das Obras Públicas ordenava a demolição do edifício, para evitar que a sua derrocada iminente atingisse outras casas. Mas só em parte essa sugestão foi cumprida.

Em 1796, fora apeada somente a parte cimeira da torre. A pedra resultante da demolição, conforme sugestão constante do aviso régio, foi levada para as obras de construção do novo edifício da cadeia que se andava a fazer no Olival. O andar que ficava ao nível da catedral ficou de pé. Foi nesta dependênci­a que, apesar da degradação do edifício, os vereadores se reuniram, nesse mesmo ano, como era costume, aliás, no dia da procissão do Corpo de Deus, para ali envergarem as respetivas fardas e insígnias com que acompanhar­iam a procissão que saía da Sé. E ali voltariam, finda a cerimónia, para se desfardare­m, digamos assim.

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O amplo terreiro da Sé é obra municipal dos anos 40 do século XX
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