Jornal de Notícias

Matar ou morrer

- Pedro Ivo Carvalho Subdiretor

Marco Ficini era um adepto profission­al do futebol. No que isso tem de salutar e de nefasto. Morreu de madrugada numa rua de Lisboa, atropelado e abandonado por aquele ou aqueles que o atingiram e por todos os que, supostamen­te, estariam a seu lado aquando da batalha campal entre elementos das claques do Benfica e do Sporting. Cobardes uns, cobardes outros. As circunstân­cias em que ocorreu este trágico episódio ainda estão por apurar. Mas, ainda assim, não ouvi ninguém admitir a possibilid­ade de o dérbi entre os clubes da capital poder ser adiado. Já não falo por respeito, mas para dar o exemplo, para suster a espiral de alucinação coletiva que varre o futebol português. E isso, esse silêncio, a simples convicção de que nem era preciso admitir a hipótese, diz muito (diz tudo) da gente que habita esse admirável mundo.

Ainda assim, o que mais me (ia escrever chocou, mas honestamen­te já nada me choca nesse universo paralelo), mas dizia, o que mais me inquietou foi o clamor daqueles que, no resto do ano, agem como pirómanos insaciávei­s e agora se mostraram ao país como virgens impolutas e ofendidas, distorcend­o a moral a seu favor para agradar à numerosa turba que os idolatra.

O cadáver de Mário Ficini ainda estava morno e já ecoava na arena pública o som insuportáv­el dos insultos entre dirigentes. Alheios às circunstân­cias, alheios à normalidad­e, alheios à fase adulta e ao bom senso. Alheios à sua responsabi­lidade e às consequênc­ias dos seus atos. O silêncio é respeitoso em todo o lado menos no futebol, onde até palmas se batem nas homenagens caladas aos mortos.

Este é o país onde, quase todos os dias, se incita, na televisão, à clubite primária e virulenta, se agitam teorias da conspiraçã­o, se repetem repetições para (de)formar juízos. Horas e horas de programas sobre futebol onde não se fala de futebol, num campeonato alternativ­o onde os pontos são as audiências. Mas ao futebol perdoa-se tudo, não é verdade? Porque faz parte da trilogia mágica a que se somam fado e Fátima. É uma força indomável. E as forças indomáveis não andam de trela curta. O povo quer, o povo tem.

O pior do futebol não é o futebol. Não o que se disputa num retângulo verde, 11 para cada lado, uma bola saltitante e um desejo ardente de golo. Isso é um desporto apaixonant­e. Ganhar ou perder. Falo do resto. E o resto é um prolongame­nto doloroso sem dignidade ou brilho. Não é ganhar ou perder. É matar ou morrer. De uma coisa podemos estar certos: nesse terreno pérfido onde pululam egos maiores do que o corpo, as virgens que nunca o foram derramarão sempre as lágrimas típicas da primeira vez. Faz parte da enorme encenação em que está transforma­do o jogo.

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