#lingrinhas
O SEMÁFORO
ficou vermelho para peões. O homem arrancou com ar maldisposto. Era hora de ponta. A fila travou-o. A mulher, a escorrer calor, carregada de sacos e com andar lento, pôs um pé na passadeira. Hesitou. Decidiu passar. Ele avançou. Travou a fundo e gritou: “Anda lá, ó sostrona!”. A mulher olhou-o pelo canto do olho e murmurou: “Lingrinhas...”. Sentime bem. Já não me chocará se disserem que sou do tempo da Maria Cachucha. Ainda há quem use expressões sem calendário. Lembrei-me de outras. Distraí-me. Evitei ficar résvés Campo de Ourique com o carro do lingrinhas. A sostrona já tinha desaparecido. Estava tudo a dar corda aos sapatos, porque a hora do jantar estava perto. O calor dava à cidade um ar de pandorca. A multidão arrastava-se. A multidão era uma lontra. O trânsito pôs a vida em banho-maria. Só umas buzinadelas quebravam o gelo. O lingrinhas era, no meio de tudo isto, o mafarrico. Gesticulava, passava a mão pelo cabelo. Fitei-o uma vez no retrovisor. Senti que me insultava com os olhos. Parecia uma ave de mau agouro. Demorei a livrarme dele. Chamei-lhe, entredentes, gato-pingado e meti uma lança em África ao passar a ponte. Senti a brisa e fiz tábua rasa desse fim de tarde. Não podia com uma gata pelo rabo. Mas tinha uma à minha espera, em casa. Com ar de sostra.