Jornal de Notícias

Um país a soletrar tempestade

- POR Miguel Guedes Músico e jurista

O dia de segunda-feira não acordou morno para as notícias em Portugal. Noite e madrugada em sobressalt­o, um furacão ou tempestade Leslie de género indefinido a provar que queria ficar para a história como bem mais do que uma caixa rotativa para órgãos Hammond num país a contas com uma tempestade que não se via há décadas. Nessa noite de ventos tropicais, caíram ministros e ruíram as paredes secretas do sigiloso Orçamento do Estado. As notícias não primavam pela falta de comparênci­a mas a realidade impunha-se. Mas a realidade não veio com o vento.

O mistério da desapariçã­o apoderou-se das manchetes dos principais jornais nacionais da semana que amanhecia com os despoNão jos da noite em pantanas. Pela leitura das capas dos jornais era evidente que se esqueciam de um país e era oficial: o clima da “twilight zone” chegara às redacções. Choque frontal. A tempestade não fazia qualquer manchete em nenhuma das capas dos jornais nacionais porque – pura e simplesmen­te – não havia sido sentida na Segunda Circular.

Leslie devastou a Zona Centro do país, provocou prejuízos na ordem dos 80 milhões de euros e teve uma maior disseminaç­ão pelo território do que os fatais incêndios de 2017. Ventos de 180 a 190 km/hora provocaram 28 feridos e 61 desalojado­s e foram mobilizado­s 8217 operaciona­is da Protecção Civil que respondera­m a 2495 ocorrência­s. Escolas fechadas, 300 mil casas sem electricid­ade e, volvidos três dias, ainda havia 2000 habitações sem luz. O país que adia para o dia seguinte esta realidade não passa de um conjunto de gente que não sabe viver em day after. É um país de rescaldo, sem actualidad­e. quer saber dos factos nem da agonia, não quer nem sabe atribuir relevância ao que não sente. Não doeu forte o suficiente na pele. As notícias mitigaram-se assim, por serem ali ao lado mas suficiente­mente longe para serem chutadas a pé que roda para os flancos laterais da página.

Os jornais regionais que, nessa manhã, davam conta que a “Maior tempestade em 176 anos devastou Região de Coimbra” colocando-a “em estado de sítio”, fizeram a actualidad­e de referência. Mas o país já elaborava na piada de que a tempestade havia parido um rato. Nas suas capas, alguns dos jornais nacionais só reencontra­ram um país devastado 24 horas depois. Esta é a informação que não sai da boca do lobo. É esta enviesada forma de julgar o peso da realidade pela medida do que nos afecta directamen­te, a razão pela qual o serôdio centralism­o do país se alia ao esquecimen­to e à falta de identidade comum.

A tempestade não fazia qualquer manchete em nenhuma das capas dos jornais nacionais porque – pura e simplesmen­te – não havia sido sentida na Segunda Circular

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