O paraíso galego da mobilidade
Pontevedra declarou guerra aos carros. Viagem a pé à cidade espanhola onde as crianças brincam na rua e os idosos caminham sem medo. Até os pássaros se ouvem
em Pontevedra urbano@jn.pt
Primeiro estranha-se. A chegada a Pontevedra, na Galiza, em Espanha, para quem tem acompanhado notícias sobre a política adotada naquela cidade de retirada dos automóveis da zona urbana – até o “The Guardian” –, pode até desiludir. Há trânsito, como noutra cidade qualquer. Mas à medida que nos entranhamos nas ruas, o modelo com o lema “Pontevedra: Menos carros, mais cidade”, que anda nas bocas do Mundo (ler entrevista ao lado com Anabel Gulias), revela-se. E é como entrar num grande pátio onde uma multidão caminha, convive e se diverte. Despreocupadamente.
As ruas são planas. E ainda que haja alguns carros a circular, são praticamente todos comerciais, e rodam em marcha tão lenta que quase não se ouvem. A velocidade máxima permitida no centro da cidade é de 30 km/hora. Veem-se táxis, veículos a fazer cargas e descargas ou moradores que pontualmente necessitam de parar perto de casa ou de algum comércio. Há um período das 10 às 12 horas, e das 16 às 18, em que lhes é permitido. Mas não há trânsito de atravessamento.
Na maioria das ruas centrais, as faixas de rodagem foram eliminadas e os passeios foram rebaixados. Há canteiros com flores e árvores. E em vez de automóveis, circulam pessoas. A via pública é todo um passeio onde se escutam vozes e risos de adultos e crianças e o chilrear dos pássaros. Não há preocupações ou irritações com buzinadelas.
“Aqui os carros estão domesticados. Não buzinam. Quando alguém buzina, dizemos logo que não deve ser de Pontevedra”, afirma o alcalde Miguel Anxo Lores, mentor deste modelo urbano, já premiado várias vezes em Espanha e também a nível internacional.
Começou a ser implementado há 19 anos por Lores, após ser eleito presidente. Até ali, durante 12 anos, foi vereador da Oposição. “No primeiro mês pedonalizamos todo o Centro Histórico, que são 300 mil metros, mas o resto da cidade foi pouco a pouco. Tem sido um processo longo e ainda não o acabamos. Temos coisas para melhorar, mas quando começamos Pontevedra era um armazém de carros. Entravam mais de 100 mil por dia”, recorda. “Era o caos. As pessoas queriam ir embora daqui. Passavam mais 14 mil carros na Rua Michelena, onde está ins- talada a sede do município (pedonal), e outros 28 mil na Praça de Espanha (pedonal)”.
O estacionamento foi arrumado para 12 parques subterrâneos pagos (cerca de cinco mil lugares), e para 13 mil lugares gratuitos à superfície em ruas menos centrais e ao redor da cidade. Foi criado um mapa, o MetroMinutos, onde em vez de uma linha de metro se desenham as artérias pedonais e os tempos de percurso entre cada ponto. O tempo máximo entre estacionar e chegar a pé ao centro é de 15 minutos.
“A CIDADE DAS CRIANÇAS”
Para fazer esta “revolução” urbana, diz o próprio Miguel Lores, foi buscar inspiração à obra “A cidade das crianças” do pedagogo italiano Francesco Tonucci. Um livro que teoriza sobre a transformação de cidades a partir do olhar de criança. Tonucci defende que o papel das políticas públicas urbanas passa por garantir o direito a brincar dos meninos e meninas. “Não sei como é noutros países, mas em Espanha as crianças estão menos de uma hora ao ar livre. Vão de carro para todo o lado. Em casa brincam no computador. Não fazem vida no espaço público. É a geração do assento de trás (nos carros). Que tipo de crianças estamos a criar ?”, argumenta o alcalde, sublinhando: “Aqui as pessoas são o mais importante. Os velhinhos, as crianças, as pessoas com deficiência são os reis da cidade. Depois seguem-se as bicicletas, o transporte público, o transporte económico e por último os veículos privados”. “Isso é possível, desde que haja uma tomada de decisão política. O processo foi complicado, porque há sempre oposição política e medo da mudança. Havia medo que a cidade perdesse atividade, mas aconteceu precisamente o contrário: o comércio local medrou”, garantiu.
Nas ruas e praças centrais de Pontevedra, veem-se crianças a correr livremente, mães que empurram carrinhos de bebé, muitos (mas muitos) cães que acompanham alegres e civilizadamente os donos. Filhos que amparam os pais de idade avançada e em declínio, numa caminhada lenta. E também há inúmeras esplanadas onde as pessoas tragam o café e tagarelam, alheias a quem passa.
Segundo dados do Concello de Pontevedra, o núcleo urbano é habitado por 65 mil pessoas e há em média 71 veículos a motor por cada 100 habitantes. Destes, 70% deslocam-se, dentro da cidade, a pé ou em bicicleta, e 81 % das crianças, dos 6 aos 12 anos, vão para
a escola a caminhar, sendo que muitas se deslocam sem a companhia de um adulto e 91% dos veículos que circulam nas estradas que dão acesso à cidade não entram no centro.
SOLUÇÕES DE MOBILIDADE LIMPA
Mas o que mais diferencia é a diversidade de soluções de mobilidade limpa que a população, independentemente da idade, adota para se deslocar: bicicletas, monociclos, triciclos, patins, trotinetas, skates, segway, karts e tudo o que é veículo com rodas, elétrico ou movido a tração humana.
Ines Mendez descobriu um furo de negócio. Na ampla Praça de Espanha, instalou, há três anos, uma loja de aluguer de bicicletas e veículos alternativos. “É indispensável para o nosso negócio que haja zonas pedonais e, nesse aspeto, Pontevedra tem muito espaço”, afirma.
Julia Conti, de 92 anos, lê o jornal sentada ao sol, numa das praças da cidade, enquanto a sua cadela “Bimba” pulula. E indica a descontração como uma das virtudes da cidade: “O que mais gosto é de não ter de parar e esperar que o semáforo mude para poder atravessar a rua”.
Eis Pontevedra, paraíso galego da mobilidade urbana.