Lojistas e marçanos
A Rua dos Clérigos continua a ser uma das artérias mais movimentadas da cidade. Antigamente, frequentavam-na as moças e os moços dos arrabaldes que, às suas bem sortidas lojas, iam comprar, elas, os xailes de merino, os cachenés de matiz ou os lenços bordados ; e eles, a jaqueta de alamares ou o chapéu braguês.
Hoje são os turistas que andam rua acima rua abaixo.
O tipo de lojas também é, na atualidade, muito diverso do de antigamente. Onde, nos idos de quarenta, do século passado, se vendiam carapuças (a artéria era conhecida pela Rua dos Carapuceiros) está hoje um sofisticado comes e bebes, mais vocacionado para servir turistas do que para agradar a cidadãos locais.
A Rua dos Clérigos nem sempre teve a configuração urbanística que hoje apresenta. Até ao século XVIII, chamava-se Calçada da Natividade e tinha casas só do lado direito para quem a sobe a partir de Praça da Liberdade. Do lado poente, corria a muralha fernandina. O nome, tomara-o de uma fonte e oratório da invocação da Natividade de Nossa Senhora, que havia na Praça da Liberdade, onde até há pouco tempo esteve a cervejaria Sá Reis.
No século XVIII, mais concretamente no dia 1 de março de 1788, reinando em Portugal D. Maria I, um aviso régio ordenou a demolição do troço da muralha que subia a oriente da Calçada da Natividade, para que, no terreno deixado vago, se construíssem habitações. A rainha concedia determinadas facilidades a quem construísse no prazo mínimo de cinco anos.
Por essa altura, já o conjunto dos Clérigos ( igreja, enfermaria e torre ) estava de pé e a velha Calçada da Natividade passou a chamar-se, a partir daí, calçada dos Clérigos e assim se manteve até 1860, ano em que, sendo governador civil do Porto o visconde de Gouveia, a antiga calçada passou à categoria de rua.
Era costume antigo os comerciantes da Rua dos Clérigos exporem o melhor das suas fazendas no passeio fronteiro ao estabelecimento (ver foto). Usavam para isso um apropriado tipo de cavaletes de madeira sobre os quais dispunham os seus melhores artigos e de forma a atrair a atenção de quem por ali passava.
A mercadoria era guardada, à vista, por um marçano, (ver caixa ) um aprendiz de caixeiro que tinha também a incumbência de “empurrar” para o interior do estabelecimento os potenciais compradores. Quem quer que parasse, por um momento que fosse, diante do mostruário exposto no passeio, era imediatamente abordado pelo marçano que o convidava a entrar e o encaminhava até ao experiente caixeiro que tudo fazia para que o freguês não saísse da loja de mãos a abanar.
Ora tudo isto aconteceu num tempo em que os caixeiros e os marçanos trabalhavam de sol a sol, ou seja desde manhã muito cedo, até ao anoitecer. A mercadoria ficava exposta no passeio enquanto a loja se mantivesse aberta.
Mas um dia veio a obrigatoriedade de as lojas encerrarem para o almoço. A partir daí, o volume de peças para exposição diminuiu consideravelmente e a maneira de expor os artigos foi também simplificada de modo a que as fazendas e outros artigos , à hora do almoço, fossem retirados com relativa facilidade e novamente colocados após a reabertura do estabelecimento.
Algumas casas comerciais da Rua dos Clérigos tinham à porta um banco de madeira onde o dono da loja, envergando a sua impecável bata de cotim cinzento e com a ponta do lápis, com que fazia as contas, no caderno de papel almaço, na orelha, se sentava quando não havia clientes para aviar e aí conversava, às vezes, com o colega da loja do lado, com os clientes, depois de concluída a compra ou com amigos que por ali passavam e não iam adiante sem um dedo de conversa.
Foi já nos alvores do século XX que uma verdadeira revolução estética nos estabelecimentos veio alterar o velho hábito de expor os artigos no passeio. Estamos a referir-nos ao aparecimento das montras. Até ali, o estabelecimento era servido, em regra, por duas portas. Uma delas viria a ser sacrificada e no seu lugar construiu-se uma montra. O que constituiu uma novidade na estética dos estabelecimentos. Dizia-se até que uma montra bem iluminada e com os artigos expostos com alguma imaginação era bem mais eficiente do que um caixeiro.
A Rua dos Clérigos nos começos do século XX
também tinha de ajudar nas lides domésticas, carregando cântaros da e água que ia buscar aos fontanários para o abastecimento doméstico; engraxar os sapatos do patrão e as botas da patroa e das meninas. Dormia numa enxerga colocada no saguão de uma escada e a única regalia que o patrão lhe concedida era a liberdade de ir assistir pelas 6 horas da manhã à missa da alva nos Congregados ou na Trindade.