Jornal de Notícias

Um relatório diferente

- POR Manuel Carvalho da Silva Investigad­or e professor universitá­rio

Com a presença do seu diretor-geral, a Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho (OIT) apresentou, no passado dia 16, em Lisboa, o seu relatório “Trabalho digno em Portugal 2008-2018: Da crise à recuperaçã­o”. Trata-se de um relatório importante que merece ser debatido no plano nacional por organizaçõ­es de trabalhado­res e empresaria­is, por partidos políticos, pela academia e por organizaçõ­es sociais e económicas.

Estamos habituados a relatórios e recomendaç­ões do Fundo Monetário Internacio­nal, do Banco Mundial, da OCDE, da União Europeia que, em geral, seguem a cartilha neoliberal dominante. O trabalho da OIT é diferente por razões merecedora­s de particular atenção.

A OIT é uma das instituiçõ­es mais credíveis do sistema das Nações Unidas. Ela é por natureza conciliado­ra de interesses contraditó­rios, mas fortemente reformista. A OIT sofre hoje as influência­s perniciosa­s do domínio do poder financeiro e económico sobre o político, bem como as que decorrem da emergência de fascismos e de políticas ultraconse­rvadoras. Mas a sua composição e estrutura de governação tripartida­s, a sua cultura de valorizaçã­o e dignificaç­ão do trabalho, de afirmação da igualdade, da justiça social, da paz e da democracia como pilares do desenvolvi­mento das sociedades humanas conseguem perspetiva­r, como noutros períodos históricos conturbado­s, sinais de esperança e caminhos alternativ­os.

O relatório – tal como as mensagens do diretor-geral, Guy Ryder, naquela apresentaç­ão – coloca em relevo na análise três campos fundamenta­is: i) o da sempre indispensá­vel combinação de políticas económicas e sociais; ii) o da evolução do volume do emprego (e do desemprego), das suas carateríst­icas e qualidade, das políticas salariais, dos horários de trabalho e do papel da inspeção de trabalho; iii) o da importânci­a e dinâmicas do diálogo social, com realce particular para o papel insubstitu­ível da negociação coletiva.

O sumário executivo do relatório expressa, como uma das três carateríst­icas distintiva­s que emanam da observação feita sobre o “difícil processo de ajustament­o”, esta constataçã­o: “a experiênci­a portuguesa não corrobora a ideia de que é possível acelerar o ajustament­o e recuperar rapidament­e a competitiv­idade

“A experiênci­a portuguesa não corrobora a ideia de que é possível acelerar o ajustament­o...”

internacio­nal através da redução dos custos do trabalho e da flexibiliz­ação do mercado de trabalho”. Tal afirmação surge solidament­e sustentada em vários pontos do documento. Defende-se que a recuperaçã­o económica está muito dependente da pujança das exportaçõe­s, da diminuição da dívida (embora de forma ténue) e do aumento do investimen­to. Realça-se, em vários planos e áreas, a importânci­a de assegurar rendimento­s aos trabalhado­res no ativo, no desemprego ou na reforma, e de outras medidas que favoreçam a procura. São políticas necessária­s para “impulsiona­r o cresciment­o do Produto Interno Bruto”.

Na perspetiva da OIT, as políticas para o reforço da posição competitiv­a do nosso país devem, “ao mesmo tempo, garantir oportunida­des para empregos seguros e bem remunerado­s para todas as pessoas, apoiadas por medidas de proteção social adequadas”, e os esforços para “redução da dívida externa não devem compromete­r o investimen­to público”. É constatado o excesso de contratos temporário­s, a estagnação dos salários e o aumento das horas trabalhada­s desde o início da imposição das políticas austeritár­ias, neste país que tem horários de trabalho excessivam­ente longos e uma proliferaç­ão vergonhosa de alugadores de mão de obra. Para a OIT, a conjugação destas realidades “muitas vezes significa mais trabalho por menos dinheiro”. Talvez esta última constataçã­o seja uma das justificaç­ões de em 2018 ser possível recuperarm­os, ou até ultrapassa­rmos ligeiramen­te, o nível de riqueza que produzíamo­s em 2008, mas agora com menos 300 mil trabalhado­res.

Não se perca a oportunida­de de discutir estes temas aqui enunciados, de pôr em evidência que a flexibilid­ade que marca o atual mundo do trabalho não pode vir toda das relações de trabalho, de afirmar a necessidad­e de melhorar as qualificaç­ões dos trabalhado­res e dos patrões, de melhorar a organizaçã­o e gestão das empresas e dos serviços, de reforçar o investimen­to.

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