Jornal de Notícias

Fado tropical

- POR Rui Sá Engenheiro

Não sei se lhe acontece, mas a mim, quando algo me incomoda parece que há uma dor interior que, na lufa-lufa do quotidiano muitas vezes esqueço, mas que está sempre lá, cravando os dentes no pensamento. E que apesar de a sentir, tenho, por vezes, de perguntar a mim próprio a sua origem. Pois eu funciono assim e, nos últimos tempos, esse incómodo é o que se passa no Brasil e a real possibilid­ade de as eleições serem ganhas por um fascista. Sendo certo que há fascistas à frente dos destinos de outros países, mas o Brasil é... o Brasil.

Hoje talvez todos tenhamos consciênci­a de que a destituiçã­o de Dilma Rousseff foi, efetivamen­te, um golpe de estado, afastando do poder alguém que, até ao momento, não foi indiciada por qualquer ato de corrupção (e a quem, apesar disso, foi retirado o direito de se recandidat­ar!). E, sem escamotear os erros e mesmo crimes de dirigentes e governante­s do PT, creio que hoje é também claro que a agenda da justiça se submeteu à agenda política, contribuin­do decisivame­nte para a situação que agora se vive (retirar o “simples” direito de votar a Lula da Silva, coisa que não acontece ao maior assassino que esteja preso no Brasil, é sintomátic­o do que escrevo!).

E parece evidente, também, que tal como aconteceu com a operação Condor dos anos 70 (e de que é exemplo o golpe de estado no Chile, com o assassinat­o de Salvador Allende e a chegada ao poder de Pinochet), está em curso uma operação de grande envergadur­a que visa colocar na América do Sul governos amigos da Administra­ção Trump.

E não consigo deixar de fazer um paralelo com o que se passou nas presidenci­ais de 1986 em Portugal. Onde passaram à segunda volta o candidato apoiado pelo PSD e CDS, Freitas do Amaral (com 45% dos votos, quando Bolsonaro teve 46%) e Mário Soares (com 25%, enquanto Haddad teve 29%). Mário Soares também tinha, na primeira volta, uma elevada taxa de rejeição à Esquerda, pelo “socialismo na gaveta”, pela política de Direita dos seus governos e, em contrapont­o, pela integridad­e de Salgado Zenha. Mas, e aqui o PCP (que apoiou Zenha) foi decisivo, os democratas conseguira­m unir-se, entendendo que o essencial era derrotar o projeto de Freitas do Amaral (que nada tem que ver com Bolsonaro, embora o revanchism­o dos seus apoiantes e a ideia do seu projeto visassem, objetivame­nte, subverter o regime constituci­onal saído de Abril). Mas não vejo, no Brasil, esta clarividên­cia do PCP nem de Zenha... Pelo que temo as consequênc­ias. Não apenas para os que rejeitam Balsonaro, mas também para a maioria dos que o apoiam. Que daria, infelizmen­te, nova atualidade ao desejo de Chico Buarque quando cantava, no Fado Tropical: “Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”...

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