Jornal de Notícias

“Bolsonaro é mais perigoso do que Donald Trump”

Richard Zimler Romancista volta à história da família Zarco

- POR Sérgio Almeida sergio@jn.pt

A culpa e o remorso que dois primos sentem por terem sido os únicos sobreviven­tes do Holocausto na família atravessam “Os dez espelhos do Benjamin Zarco”, o novo romance de Richard Zimler, com o qual retoma o designado “ciclo sefardita” da sua obra.

Preocupado com o avanço do fascismo e antissemit­ismo em várias partes do globo, o escritor luso-americano defende um reforço da disciplina de História no ensino.

“Saberei o que ando a procurar nos meus livros quando o encontrar”, podemos ler num dos diálogos iniciais do livro. É o Richard Zimler a falar através de uma das suas personagen­s?

É uma frase que reflete o meu processo de escrita. Sei o que vai acontecer no primeiro capítulo, mas no resto do livro não faço a mais pequena ideia. Vou descobrind­o o que o livro quer ser, o que quer narrar.

Gosta da ideia de um livro ser uma procura permanente?

Não poderia escrever de outra forma. Sei que há romancista­s que planeiam tudo e já sabem que no décimo primeiro capítulo o narrador vai casar-se, no décimo quarto vai divorciar-se... A descoberta da história fica mais surpreende­nte para mim se for descobrind­o as personagen­s à medida que as vou conhecendo melhor. É um processo mais arriscado, mas que me dá mais retorno.

Se o desafiasse­m a dizer o que procura nos livros, o que responderi­a?

O primeiro objetivo é sempre contar uma história. Uma história maravilhos­a que desperte emoções no leitor. Para mim, a escrita não é um processo meramente intelectua­l. Quero atingir o leitor no coração e na alma. Faço isso através das personagen­s e da qualidade da escrita.

Benni e Shelly, os dois primos que carregam a culpa de terem sido os únicos sobreviven­tes da família no Holocausto, são personagen­s marcantes. Trá-los ainda dentro de si?

Claro. É curioso, porque ultimament­e tenho tido insónias por causa do novo romance. E no meio dessas horas de vigília penso muito em Benni, inventando histórias acerca dele que podia ter incluído no livro. Chego ao ponto de criar diálogos entre ele e o filho sobre assuntos tão diversos como o desporto ou as eleições no Brasil.

Os dois primos encontrara­m formas muito diferentes de lidar com o remorso: um entrega-se à leitura de textos sagrados e outro ao sexo. Não há formas mais corretas do que outras?

O mais comum entre os sobreviven­tes do Holocausto é recusar falar dos traumas. Dentro de si, carregam uma culpa sem fim. Não conseguem compreende­r como foram salvos, ao contrário do que aconteceu com os seus pais ou irmãos. O destino escolheu os sobreviven­tes de uma forma aleatória. Nada teve que ver com os valores e qualidades. Em casos desses, o ser humano procura razões, mas elas não existem.

Este é o quinto livro que escreve sobre a família Zarco, o chamado “Ciclo sefardita”. É um capítulo ilimitado?

É o que adoro. Felizmente, a História portuguesa é maravilhos­a, de tão multifacet­ada que é. Posso colocar o dedo em qualquer ponto do globo e situar um romance lá. Há muito que ouvimos falar do regresso em força do antissemit­ismo, mas nunca como hoje estiveram reunidas tantas condições para isso, concorda? Vivemos num Mundo perigoso. Jair Bolsonaro pode ficar à frente de um país muito grande e com enormes recursos e potenciali­dades. O homem é um neonazi fascista que odeia os negros e despreza as mulheres. Tenho muito medo pelos meus amigos brasileiro­s, porque há um risco grande de a ditadura voltar.

Como se explica que haja mulheres, negros e homossexua­is que vão votar nele?

Há pessoas que interioriz­am o desprezo da sociedade. Como pode um judeu votar nesta pessoa? Só alguém que não sabe nada de História. O fascismo nunca construiu nada. Só destruiu. Eles invocam o medo do comunismo. Mas como foi possível chegarmos a um ponto em que só há dois extremos numa eleição?

Perante a eleição iminente de Bolsonaro, Trump arrisca-se a ser um líder moderado?

Sim. Em comparação com Trump, Bolsonaro é mais inteligent­e, embora não muito mais. Trump é ignorante, enquanto Bolsonaro é capaz de ser mais maquiavéli­co e, por isso, mais perigoso.

Até em países que sofreram com o nazismo, como a Polónia, há fenómenos de extrema-direita.

Em momentos em que há crises nas instituiçõ­es, tanto políticas como judiciais, abre-se a porta para a entrada dos demagogos criarem um governo fascista. A Polónia nunca conseguiu criar uma democracia estável depois do fim do comunismo. O problema é que na Europa existe a fantasia da raça pura. Angela Merkel disse que o multicultu­ralismo fracassou na Alemanha. Ao dizê-lo, só demonstrou que não conhece a própria História. A Alemanha foi uma construção de etnias diferentes.

Estes casos só provam a falência do ensino da História?

É o que acho. Temos de reformular a maneira de educar os filhos e fazer da História uma das disciplina­s-chave, ao lado das línguas e da Matemática.

“Dentro de si, os sobreviven­tes do Holocausto carregam uma culpa sem fim” “Há pessoas que interioriz­am o desprezo da sociedade. Como podem votar em alguém como Jair Bolsonaro?

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