Recorde de horas extra, baixas e férias por gozar no SNS
Dificuldades em hospitais e centros de saúde devido à exaustão dos profissionais Na ressaca da pandemia, ausências por doença aumentaram 44%
Os profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) acumulam milhares de horas extra e de férias por gozar e o absentismo por doença está muito elevado. Na “ressaca” da pandemia, nos hospitais e centros de saúde, dói o corpo e a alma. Os números disponíveis permitem um olhar sobre o desgaste físico e mental acumulado. Mas é nas palavras, escondidas no receio de represálias, que transborda o desalento e a revolta.
Entre janeiro e setembro deste ano, os profissionais do setor da saúde realizaram mais seis milhões de horas extra do que em igual período de 2019, num total de quase 17 milhões de horas a mais, números nunca antes vistos.
Num ano em que se esperava um aumento dos dias de férias gozados porque o Governo concedeu uma majoração aos profissionais de saúde que estiveram longas horas na linha da frente da covid-19, os dados do Portal do SNS apontam em sentido contrário. De janeiro a setembro, houve 6657 dias de ausência por conta do gozo de férias no setor da Saúde, o que corresponde a metade dos dias tirados em igual período de 2019 (13 371).
As ausências por doença também são expressivas. Mais 634 mil dias de baixa até setembro (44%), comparativamente com o mesmo período antes da pandemia. Os números do absentismo por doença do Portal do SNS incluem quem esteve infetado com covid-19, mas também refletem muito cansaço, desgaste psicológico e até “burnout”.
Tal como reconheceu recentemente Filomena Cardoso, enfermeira diretora do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de S. João, perante um estudo interno que mostrou um aumento de 33% no absentismo laboral em geral e de 70% nos enfermeiros.
CHAMAR HERÓIS É PREJUDICIAL
Alertando que a desorganização do sistema era prévia à pandemia, e foi agravada, o psiquiatra Pedro Morgado sublinha que as férias e dias de descanso são fundamentais para o restabelecimento das condições físicas e mentais dos profissionais de saúde. Quando não são gozados de forma correta têm consequências”, avisa.
Paralelamente ao desgaste acumulado, há também muitas frustrações que resultam de uma ideia que foi sendo construída ao longo do último ano e meio e que não é compatível com a realidade. “A narrativa de que os profissionais de saúde são heróis é muito negativa para os próprios, contribui para o aumento das frustrações e da culpabilização por situações sobre as quais não têm responsabilidade”, explica o médico, também professor da Universidade do Minho, que fez um estudo sobre a saúde mental dos profissionais de saúde durante a primeira fase da pandemia. O trabalho não teve seguimento, mas as consequências eram adivinháveis.
E o pior é que a situação deverá agravar-se com a chegada do inverno e o aumento da procura dos serviços. “É uma espécie de bola de neve que vai crescendo e que traz sequelas para a saúde destes profissionais”, realça.
SÓ GOZAM QUANDO DÁ JEITO
Entre os enfermeiros grassa a sensação de que o esforço sobre-humano dos últimos
18 meses de pouco ou nada valeu. Lúcia Leite, presidente da Associação Sindical Portuguesa de Enfermeiros, garante que além das horas extra registadas, todos os meses as escalas saem com horas a mais que ficam numa espécie de bolsa, ilegal, para converter em dias de descanso, sempre muito difíceis de gozar. “Cada unidade tem em média 500 horas em dívida às equipas”, assegura, concluindo: “Os enfermeiros trabalham quando faz falta, mas só gozam o descanso quando dá jeito ao serviço e ainda têm perdas de vencimento”, afirma.
A Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos, os números não surpreendem: “Há muitos médicos com dezenas de dias de folga que não são gozados. Somando a isto as férias, dá para perceber o descanso que fica por gozar”. E neste contexto, refere, fica difícil compreender como o Governo inclui no Orçamento do Estado 2022 incentivos para quem faz mais de 500 horas extra anuais na Urgência. “A lei impõe um limite anual de 150 horas extra que nem devia ser atingido e agora estabelecem-se incentivos para quem ultrapassa as 500, isto é um estímulo ao desgaste, ao burnout, à insalubridade”, acusa o médico.
Equipas continuam a trabalhar muitas horas a mais e o cansaço reflete-se no absentismo
Cenário igual a “pós-guerra”
No Hospital de São João, no Porto, o absentismo laboral aumentou 33% entre janeiro e agosto de 2021 face ao mesmo período de 2019. Entre os enfermeiros, subiu 70%. A enfermeira diretora comparou o atual panorama a um “pós-guerra” e disse que a percentagem reflete, principalmente, “o cansaço acumulado ao longo dos últimos meses”.
Nuno Esteves Enfermeiro Cuidados Intensivos
“Durante a pandemia abdicámos de todos os nossos dias, das férias, das folgas, do tempo com a família e agora estamos exaustos. E este desgaste está muito associado à desmotivação”
Preocupação com profissionais
A propósito das greves anunciadas, a ministra da Saúde disse esta semana que a motivação dos profissionais, o seu desgaste e preocupações são uma prioridade para o Governo, assim como os utentes, mas que a sustentabilidade financeira do SNS também não pode ser esquecida.
É um discurso transversal, quase aflitivo de se ouvir, tamanha é a desilusão que encerra. Enfermeiros e assistentes operacionais superaram-se durante as fases críticas da pandemia, deram o “litro” pelos doentes, abdicaram de férias, folgas, descansos e da vida fora das quatro paredes do Serviço Nacional de Saúde. A “ressaca” do turbilhão dos últimos 18 meses está a bater forte. Ao desgaste acumulado, junta-se a desmotivação de quem olha para a frente e não vê melhorias.
São poucos os que ousam dar a cara. Há uma espécie de receio coletivo de ser prejudicado por expor os problemas laborais dos hospitais que foram agravados com a pandemia. Bancos de horas, que não são legais, equipas deficitárias, dificuldade em gozar férias e folgas, remunerações que não progridem.
Nuno Esteves é enfermeiro dos Cuidados Intensivos do Hospital de S. João há 20 anos. É um dos mais antigos do serviço que ocupa o piso 6 do maior hospital do Norte e que se multiplicou durante a pandemia. Para esse crescimento, Nuno formou dezenas de colegas, alguns novinhos e sem experiência, recrutados para dar resposta ao desafio das suas vidas. Agora, vê-os serem contratados com um vencimento igual ao seu. “Estou há 20 anos na base da carreira, não há progressão nenhuma, é uma desmotivação enorme”, desabafa.
SINTOMAS DE BURNOUT
Quando olha à volta, Nuno vê “muito cansaço físico e psicológico”. Mesmo de quem já gozou férias, como é o seu caso. “Muitas pessoas vieram dos períodos de férias com um cansaço enorme, desmotivados, sem vontade de agarrar projetos”, realça. No serviço onde trabalha estão agora a entrar as baixas. “As pessoas estão exaustas, sente-se isso entre colegas e acho que isto está muito associado à desmotivação, àquela sensação de que nada vai melhorar”, constata.
Margarida Sousa, enfermeira do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, tem 98 horas numa bolsa que tem de ser “zerada” até ao final do ano. Como, não sabe. É quase um mês de trabalho a mais, que foi sendo acumulado em escalas mensais sempre superiores ao que diz no contrato de trabalho. Em outubro, por exemplo, foi contemplada com mais 25 horas. O cansaço “é extremo”. “Todos nós roçamos alguns sintomas de burnout”, assegura.
Ana Neves, assistente operacional do Hospital de Gaia, fala sem medo, protegida pela lei sindical. No seu caso, só aceita trabalhar mais se as horas forem pagas e o hospital tem cumprido. Mas há muitos colegas, assegura, que preferem converter as horas em descanso e que só podem fazê-lo quando o serviço abranda.
O pior é que o aviso surge sempre em cima da hora, muitas vezes às sete da manhã. “Tenho colegas com quase 190 horas que querem descansar, querem gozar aquele tempo que trabalharam a mais, mas o hospital não tem como dar folgas”, sublinha, explicando que tal acontece porque as equipas são curtas.
Margarida Sousa Enfermeira
“Tenho 98 horas positivas, é quase um mês de trabalho a mais. As semanas de 35 horas nunca são cumpridas. Todos os meses as escalas vêm com muitas horas a mais ”
Ana Neves Assistente operacional
“Tenho colegas com quase 190 horas que querem descansar, querem gozar aquele tempo que trabalharam a mais, mas o hospital não tem como dar folgas porque falta pessoal”