MOVE-SE E COMO!
O Epur está em velocidade de cruzeiro, vencidas as vicissitudes expectáveis num restaurante que se instala num prédio pombalino, em plena Baixa lisboeta. O projeto de Vincent Farges configura uma das mais sólidas interpretações do sabor português, alicerç
Temos muita sorte. Além das muitas vocações profissionais para o mundo da cozinha profissional que ano para ano engrossam a coluna nacional, Portugal está a fixar cozinheiros de gabarito universal, fazendo-nos acreditar no nosso próprio valor de forma firme. Somos terreno fértil para os excelentes da cozinha. O caso de Vincent Farges, vindo de França com Antoine Westermann em 1998 para o Fortaleza do Guincho, demonstra na perfeição o fenómeno, com a abertura recente do Epur, no Chiado.
Nascido em Lyon, terra de gigantes da alta-cozinha francesa, começou ainda menino a estudar cozinha e aos 18 anos já estava pronto para a vida dos fogões. Périplo grande por cozinhas de primeira linha até que em 1996 começa a trabalhar no Burehiesel, Estrasburgo, o três estrelas de Westermann. Isso ditou dois anos depois a vinda para Portugal, como sous-chef do grande mestre alsaciano, assumindo a liderança em 2005, após um ciclo de cerca de dois anos por Marrocos e Grécia. Lição importante mesmo para os nossos maiores, quando se é da cozinha é-se sobretudo do mundo. O momento de saída em 2015 acontece quando decide concentrar-se no essencial e opta por um projeto próprio, juntamente com José Pedro Mendonça, empresário que detinha já no belo espaço pombalino o showroom de equipamentos de cozinha Bulthaup. As obras prolongaram-se mais do que se previa, mas o tempo foi precioso para afinar as equipas de cozinha e sala. Nesta última, dois pesos pesados: Ivo Peralta como sommelier e Teresa Grilo como chefe de sala, ambos brilhantes e firmes nos respetivos postos.
Na cozinha, o chef Farges montou uma brigada jovem e conhecedora, e quem os viu a todos em megacozinhas, ali vai encontrá-los num espaço que namora o doméstico, com janelas abertas para a rua, ao alcance da vista de quem passa. A toada é definitivamente de depuração, de resto como sugere o nome da casa; concentração no essencial. É também o demonstrador do quanto o segredo está na mente e não na máquina. Vincent Farges é exímio no peixe, conhecedor profundo do que o mar dá e aqui juntou o peixe de rio, dando-lhe tratamento nobre e juntando as águas na sua sugestão Água, capítulo das entradas. Existem ainda a Horta e a Terra, de tradução óbvia nas ofertas iniciais. Nos pratos há Mar e Rio, Campo e Recordações, esta última em jeito de recuperação das nossas raízes culinárias, portuguesas, francesas e outras. Nas terminações, Chocolate, Pomar e vintage. Com o sugestivo capítulo «epurismo» na carta, somos convidados a escolher entre quatro, seis e oito momentos, preços a começar em 90 euros e 40 de suplemento vínico, a mais completa configuração a custar 160+80 euros. Numa primeira incursão, o menu essencial, 45 euros, composto de entrada, prato e café pode ser uma sugestão válida. A estratégia é a mesma, simplicidade na síntese dos pratos, muito trabalho na preparação e rendimento notável de sabor.
Eppur si muove – e, no entanto, move-se –, terá dito Galileu após ter sido forçado a recuar na afirmação sobre o movimento da Terra. Vem à memória a frase neste Epur, onde leveza, sofisticação e rigor nos são servidos em cada prato, trabalho de ourives, qualidade inefável. Claro que se move.