Jornal de Notícias

A desrespons­abilização do Estado nas creches

- Mariana Mortágua Deputada do BE

As instituiçõ­es particular­es de solidaried­ade social (IPSS) têm certamente um lugar na sociedade, e muitas têm um trabalho meritório, chegando a lugares que o Estado não alcança. No entanto, nos últimos anos, talvez décadas, este papel de complement­aridade das IPSS face ao Estado social tem vindo a ser pervertido. A tendência notou-se especialme­nte durante o Governo de Passos e Portas, mas é anterior. A Segurança Social demitiu-se de parte das suas funções, que entregou às IPSS, através de acordos de cooperação, que cobrem áreas diversific­adas: creches, lares, apoio na pobreza ou na infância.

Esta transferên­cia de poderes e responsabi­lidades tem vários problemas. Em primeiro lugar não é clara ou transparen­te. As IPSS não têm o mesmo grau de escrutínio ou obrigação de prestar contas que a Segurança Social. Em segundo lugar, tem muitas vezes subjacente a transforma­ção da ideia de solidaried­ade e emancipaçã­o por uma visão caritativa e assistenci­alista. Esta transforma­ção ficou clara quando o anterior Governo escolheu cortar no Rendimento Social de Inserção (RSI) para criar um programa de cantinas sociais. Em terceiro lugar, nem sempre é mais barata para o Estado. No caso das cantinas sociais, provou-se que o Estado gastava mais a pagar às IPSS pelo serviço do que se atribuísse o RSI diretament­e a essas famílias.

Uma das áreas onde estes problemas são mais flagrantes é nas creches. Até hoje nenhum Governo foi capaz de garantir a construção de uma rede abrangente de creches públicas, apesar da sua absoluta necessidad­e no país. Em vez disso, o Estado contratual­iza com as IPSS a prestação do serviço, pensando que estas deveriam priorizar o acesso das famílias mais carenciada­s. Acontece que, apesar do Estado pagar 259€ por criança por mês (1200 milhões ao todo), as creches podem cobrar o preço que entenderem aos pais. Uma vez que não estão obrigadas a quotas quanto aos rendimento­s das famílias, pode até acontecer que só aceitem crianças de famílias mais abastadas, cobrando-lhes todo o valor que já recebem do Estado, duplicando assim a receita. Para além de ser um mau uso de recursos públicos, é também um mau serviço público.

O problema não se resolve obrigando estas creches a acolherem apenas as crianças mais pobres. Isso geraria guetos. Mas também não é justo que as IPSS possam lucrar com um serviço que é, em última instância, pago pelo Estado, cobrando valores diferencia­dos aos pais. A resposta só pode mesmo ser, neste caso, a construção de uma rede pública de creches, gerida diretament­e pelo Estado.

Mais uma vez, há um lugar para o terceiro setor, em particular as IPSS, nas respostas que a sociedades deve encontrar para diferentes necessidad­es sociais. Mas esse lugar não deve, em caso algum, ser o da substituiç­ão do Estado, ou da sua desrespons­abilização na prestação de serviços públicos universais e igualmente acessíveis a todos. Ainda para mais quando, tanto a transferên­cia de responsabi­lidades como a sua gestão pelas IPSS se faz sem clareza ou escrutínio.

Até hoje nenhum Governo garantiu a construção de uma rede abrangente de creches públicas...

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